EFEITO DE FEITIÇO
OU A PERDA DA INOCÊNCIA -
por Felicidade Patrocínio*
Na década de
80 do século passado, posso dizer que eu dominava a região montesclarina, no
que se refere à criação e ensino da cerâmica artística esmaltada.
Eu tinha um
ateliê de arte instalado no centrinho da cidade, especificamente na rua Dr.
Santos, intitulado Barrologia, que era movimentadíssimo. Lá, diariamente, eu
ministrava aulas de pintura vitrificada na cerâmica artística, para a mais fina
flor da sociedade montes-clarense. Todas as senhoras de bom trato que para cá
se mudavam, acompanhando os maridos, gerentes de bancos ou das fábricas
agenciadas pela Sudene, era nessas, então famosas aulas de cerâmica do meu
ateliê, que iam fazer contatos relacionais. A aula, obviamente, era paga, mas a
entrada era livre, de segunda a sexta-feira, das 14 às 17 horas e, nos sábados,
de 9 ao meio dia, lá estava eu com toda a estrutura montada para receber a quem
quisesse desfrutar do prazer daquela pintura.
Como o ritmo
da frequência fosse informal, a aluna pagava pela presença, podendo vir a
qualquer dia, ou todos os dia, cada um fazia sua agenda. Uma coisa era certa,
lá você sempre encontraria pessoas comuns e incomuns, conversas interessantes
e, sempre, no meio da aula, um cafezinho novo com pão de queijo quente que, sem
dúvida, aquecia de maneira convidativa o conforto humano do ambiente.
Não era raro
eu contar, numa só aula, 18 alunas, mas, com minha diligente ajudante Marina,
dávamos conta do recado e a todas atendíamos com presteza e eficiência. E foi
assim que começamos a receber alunas de outras cidades que vinham a M.Claros só
para fazer a aula do dia, retornando em viagem para suas residências no mesmo
dia.
Eu trabalhava
heroicamente, de dia ministrando as aulas e à noite preparando os esmaltes e
enfornando as peças pintadas. Cheguei a ter 3 grandes fornos especializados
operando ininterruptamente numa temperatura de 1000º, sendo um deles de tamanho
semi-industrial. Trabalhava
demasiado, mas tinha um retorno financeiro condizente com meu esforço, além da
amizade alegre e sempre festiva da freguesia. Poderíamos dizer, sem receio de
exagero, que as atividades do ateliê
Barrologia eram um sucesso.
No entanto,
em um sábado pela manhã, quando fui chegando para a aula, encontrei minha
funcionária chocada. Ela encontrara a um passo da sala de aula uma roda com 7
velas acesas e alguns materiais irreconhecíveis no meio da roda. Ela gritava
esbaforida: Dade, isto é feitiço, fizeram um feitiço para você!
Necessário se
faz esclarecer que, para se colocar ali aquela roda de velas, foi necessário a
alguém saltar, numa noite de sexta-feira, uma primeira grade bem alta,
atravessar um corredor que tinha entrada para um escritório e continuar até
outra grade bem alta que dava acesso ao grande barracão onde funcionava o meu
ateliê.
Então, ficou
claro, o feitiço, era para mim mesmo. Atordoada com o inusitado acontecimento,
vi chegar a funcionária da loja que foi logo dizendo: Que horror! Isto é um
feitiço forte, chama-se “Camisa de Sete Varas”. E foi desfilando sete verbos
destrutivos. É Para “arrasar”, adoecer”, acabar, etc, etc e etc. A Marina,
paralisada, com a vassoura na mão, olhava para mim interrogativamente, sem
saber o que fazer.
Como os alunos
já começavam a chegar e precisávamos começar a aula, eu disse: Pode lavar e
varrer tudo Marina. Estas luzes não me farão mal, vão, sim, iluminar o meu
caminho. Assim fez a Marina, mas os alunos ficaram preocupados e, nos dias
seguintes, chegavam com orações de
exorcismo, orações medievais contra inimigos, etc.
Três dias
após o fato, eu fui acometida de febre. Dei aula com mal-estar. A febre se
repetiu no dia seguinte e se elevou, foi difícil completar a aula. E, a partir
daí, eu nem conseguia me deslocar para o ateliê, pois a febre chegava no
horário do funcionamento. Fui ao médico, que nada encontrou, rezei as orações
que os alunos traziam, não adiantava.
Uma amiga do
coração trouxe em minha casa a saudosa Lieta (pessoa que rezava em línguas
diferentes e exorcizava), mas eu não melhorava. Meu irmão médico no Tocantins,
ligava diariamente, solicitando fazer exames incomuns que foram feitos e nada.
Só depois de 3 meses prostrada, comecei a melhorar. No entanto, eu,
pessoalmente, não acreditei que minhas febres fossem efeito do feitiço, pensei
diferente.
Eu
internalizei aquele gesto ousado de invasão da minha propriedade, com riscos,
trazendo o mal para mim, de uma forma diferente. Descobri que existia alguém
que não me amava, até então eu tinha uma alma de criança e, como amava a todos,
achava que era por todos amada. E, de repente, descobri que alguém não só não
me amava, mas me odiava a ponto de providenciar minha destruição. Esta
descoberta me abalou, anulou minhas resistências, adoeceu-me. Era a perda da
inocência, da minha tardia inocência.
Daí as febres que,
de emocionais, passaram à físicas. “Por coincidência", na mesma ocasião,
uma ex-aluna, que vinha de outra cidade da região e a qual eu ensinara muito,
mudou-se para cá e abriu, perto do meu ateliê e galeria, uma linda loja com os
produtos que fizera ao longo do tempo comigo e que, independentemente, já
fabricava bem. Alguém que transitava entre nós duas contou ter sido ela quem
encomendara o feitiço. E eu fiquei me lembrando que na nossa relação, não tinha
ódio nenhum. Éramos amigas. A mim me parecia haver uma recíproca simpatia.
Compreendi então que ela condicionou o sucesso do seu negócio à destruição do
meu. Triste engano...
O seu sucesso
dependeria dela própria, do trabalho, entusiasmo e amor colocado no seu fazer,
independente do meu. Ela era capaz, tanto quanto eu. Fiquei triste, mas voltei
a atenção para o trabalho e me esqueci. Depois de um tempo de sucesso, vi
fechar a linda loja. Um tempo se passou
e, como não mais a vi, perguntei
por ela a amigos comuns, quando soube que estava se tratando de um câncer.
Desde então, sempre que rezo, peço por ela...