Análise de comportamento em
Tutameia
por Petrônio Braz*
Tenta-se aqui, palidamente, de
uma análise psicoliterária das motivações de um conto da última obra do imortal
Guimarães Rosa, o grande Viator, o criador de uma linguagem de laboratório,
como quer Peregrino Júnior, “com a sábia utilização da extraordinária
capacidade de conhecer idiomas que detinha, mas também na sua estrutura íntima
de criador da estrutura da ficção brasileira”. Olhando, como disse Levy Carneiro,
“o manto diáfano da fantasia, que ele viveu e escreveu com profundo sentimento
de solidariedade humana”, ou “trabalhando a palavra até o sacrifício”, como
afirmou Afonso Arinos, inovando sem destruir em absoluto contraste com Mário de
Andrade.
Com Guimarães Rosa, o Brasil
deixou de ser uma província cultural no sentido spengleriano como acertadamente
sustenta Assis Brasil. Muito se tem de debruçar sobre a obra de Guimarães Rosa,
como afirmou Austregésilo de Athayde no seu discurso de adeus ao imortal dos
imortais, para “a percepção da genialidade que dele transluz, no vigor das
intuições viris que perpassam por tantas páginas de SAGARANA a TUTAMEIA, com
enigmas propostos à curiosidade e ciência das gerações”.
Não será só em TUTAMEIA, de Guimarães
Rosa, nem em NOITE, de Érico Veríssimo, que os enigmas se apresentam vivos a
exigir propostas à curiosidade e ciência das gerações. Apesar da crise por que
passa a literatura brasileira, depois de Guimarães Rosa, muitas são as obras
literárias dignas de lugar de destaque no conceito da geração presente.
Enquanto arte, a Literatura é
pouco razão e muita fantasia, mas fantasia do imaginário em busca do real. É da
divagação pura e simples que nasce a dinâmica da imaginação, onde o real e o
imaginário convivem de forma convergente como fatores determinantes da criação
literária. Dentro dessa conceituação genérica, toda literatura de ficção será
uma psicoliteratura, sem que seja necessário extrair-se, da exegese do seu
conteúdo, deduções freudianas. Da obra de Augusto dos Anjos escrever-se-ia um
tratado psíquico-exegético e o fundo psicológico se assenta no acervo de
Machado de Assis, voltado para a pessoa, tendo o espírito como condutor do
comportamento humano. Todo texto literário, como quer Irene Sampaio, advém da
dinâmica criadora, “que se instala na intimidade psíquica do autor”.
Qualquer leitor bem avisado pode
adentrar através da observação introspectiva de um personagem, fruto da criação
de um autor, explicações para seu comportamento e, através dele, do
comportamento do próprio autor, sem necessidade de buscar em Descartes, Leibniz
ou Spinoza o socorro da metafísica, colocando-se no absoluto para deduzir daí o
comportamento humano.
Em toda obra literária, como quer
Freud, está presente uma relação entre o autor e o seu próprio devaneio, pois a
alma humana, dizia Leibniz, como produto desenvolvido de inúmeros elementos, “é
o espelho do mundo”.
Das quarenta histórias de
TUTAMEIA, destaquei Barra da Vaca para o presente trabalho, que ouso dar à luz
da publicidade. Na primeira leitura de TUTAMEIA, preocupado com o enredo, escapou-me
a percepção dos fatores de comportamento dos habitantes da vila de Barra da
Vaca, ante a presença de Jeremoavo.
Sucedeu então vir o grande
sujeito entrando no lugar, capiau de muito longínquo: tirado à arreata o cavalo
raposo, que mancara, apontava de noroeste, pisando o arenoso. Seus bigodes ou a
rustiquez – roupa parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba –
causavam riso e susto. Tomou fôlego, feito burro entesa orelhas, ao avistar um
fiapo de povo mais a rua, imponente invenção humana. Tinha vergonha de frente e
de perfil, todo mundo viu, devia também alentar internas desordens no espírito.
Sem jeito de acabar de chegar, se escorou a uma porta, desusado forasteiro.
Requeria, pagados, comida e pouso, com frases pálidas, se discerniu por nome
Jeremoavo. Mesmo lá a Domenha, da pensão, o velho deu à aldrava. Desalongou-se,
porém, e – de tal sorte que dos lados dobrava em losango as coxas e pernas de
gafanhoto – se amoleceu, sem serenar os olhos.
Era, pela descrição, Jeremoavo
(nome por ele colhido provavelmente em Euclides da Cunha: Jeremoabo) um
indivíduo alto (sucedeu então vir o grande sujeito), de pernas longas (pernas
de gafanhoto), de onde se pressupõe que possuísse, como componentes do corpo,
braços longos. Pelas características descritas pelo autor-narrador e, segundo
Kretschmer, dentro de sua teoria tipológica do comportamento humano, indicado
ficou que era Jeremoavo taciturno e pouco comunicativo, de comportamento tímido
e insociável, incluindo-se no tipo ectomorfo de Sheldon, de personalidade
introvertida.
Protegido pela sugestão do
prestígio ou da influência que um ou mais elementos exercem sobre o
comportamento social, Jeremoavo foi sendo aceito pela comunidade.
Representando homem de bem e
posses, quando por mais não fora, a ele razão era devida. Se’o Vanvães disse,
determinou. Visitaramno.
A hipótese levantada de ser
Jeremoavo um jagunço de Antônio Dó, nascida por acaso, de comentário
indefinido, como estímulo ou impulso, promove uma agitação coletiva, excitando
emoções variadas como fenômeno consciente e dinâmico dos motivos que, por seu
turno, excita o surgimento de uma frustração social.
Sem donde se saber, teve-se aí
sobre ele a notícia. Era bravo jagunço! Um famoso, perigoso. Alguém disse. Se
estarreceu a Barra da Vaca, fria, ficada sem conselho. Somente alto e forte,
seria um jerê, par de Antônio Dó, homem de peleja. Encolhido modorroso, agora,
mas desfadigando podendo-se desmarcar, em qualquer repêlo, tufava. Se’o Vanvães
disse a Seo Astórgio, que a Seô Abril, que a Seô Cordeiro, que a seu Cipuca: -
“Que fazer!? - nessas novas ocasiões. Se assentou que, por ora mais o
honrassem.
Uma excitação sobre outra
desenvolvida conduz à fantasia coletiva da imaginação de ser Jeremoavo um
jagunço bravo e famoso, conclusão que lhe dava a condição de homem perigoso. O
prestígio, decorrente da hipótese, estabeleceu uma forçada facilitação social para
sua permanência na Barra da Vaca, sob custódia.
Se’o Vanvães, dada a mão, levou-o
a conhecer a Barra da Vaca – o rio era largo, defronte – povoação desguardada,
no desbravio. Seo Astérgio convido-o. Estimou a boa respondência, por agrado e
por respeito.
A frustração, como processo de
interação, antecedeu à hostilidade, em um crescendo. Sua permanência provocava
suspeita.
Não aluía dali, porque patrulho
espião, que esperava bando de outros, para estrepolirem.
O estado psíquico, pela narrativa
de flagrante, nasce com a própria naturalidade do conto, onde os estados
mentais se multiplicam a cada instante. Aqui se confirma o conceito de emoção
emitido por Woodworth, como um estado de agitação do organismo, nascido de um
impulso consciente, que leva a uma atitude definida.
Sua permanência incomodava, mas
continuava a receber obséquios, pois nada tinham conscientemente contra ele.
Não existiam motivos reais, mas de forma inconsciente, e Freud afirmou que os
motivos são quase sempre inconscientes, confabularam um modo de se livrarem
dele.
E aquela aldeiazinha produziu uma
ideia.
A hostilidade não levou a uma
brutal agressão, mas a prevalência do comportamento social determinado por
impulsões inativas, como quer McDougall, ou por reflexos prepotentes se
ficarmos com Allport, definiu a supremacia do instinto de conservação sobre a razão.
Em evidência “a primeira lei da natureza”, que levou à rejeição, um dos seis
mais importantes reflexos prepotentes identificados por Allport, produzindo a
inconformidade com a presença do intruso.
Negligenciada a consciência, como
orientam os behavioristas, o comportamento dos habitantes de Barra da Vaca foi
instintivo, por motivo inconsciente, conduzido pela necessidade coletiva de
autodefesa.
Ocorre, então, como disse Afonso
Arinos, “o frêmito coletivo e trágico da vida heroica”.
De pescaria, à rede, furupa, a
festa, assaz cachaças, com honra o chamaram, enganaram-lhe o juízo. Jeremoavo,
vai, foi. O rio era um sol de paraíso. Tão certo. Tão bêbado, depois, logo do
outro lado o deixaram, debaixo de sombra. Tinham passado também, quietíssimo, o
cavalo raposo.
Fazendo-o bêbado, inconsciente,
transportaram-no para a margem oposta do rio, com esmerado cuidado, prenhe de
precauções para evitar represálias. Deixaram-no protegido pela sombra de uma
árvore qualquer, tendo ao lado o cavalo e seus pertences.
Lá, os homens todos, até o de
dentro armados, três dias vigiaram, em cerca e trincheira! Voltasse, e não
seria ele mais confuso hóspede, mas um diabo esperado, o matavam. Veio, não.
De hóspede, transformou-se
Jeremoavo em intruso indesejável, à bala recebido se voltasse.
Vencidos os reflexos ou os
impulsos inativos, foram chamados à realidade.
Dispersou-se o povo, pacífico. Se
riam, uns dos outros, do medo geral do graúdo estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da
Domenha sincera caçoavam. Tinham graça e saudades dele.
Ausente o forasteiro, por uma
percepção emotiva consciente do fato excitante, a expressão corporal do riso
sucedeu à alegria.