sexta-feira, 30 de novembro de 2018

- Crônica -

O INEXPLICADO
por Aristônio Canela*

 Quando ainda sob a luz de estrelas preguiçosas, o velho Mané Germano rompeu o orvalho nas folhas do valente brachiária amarelecido pela violência da seca do sertão norte mineiro para encontrar “Passo preto e Canáro”, bois de há muito na mesma canga, não estava preparado para viver tamanha decepção ao ver o último poço do São Lamberto agonizando em sua pequena propriedade. Jogou o chapéu para traz, cuspiu de lado, deu um longo suspiro e perguntou aos Santos o que fazer.

Padre Mariano, na missa do domingo passado, também se arvorou na mesma pergunta pedindo a todos mais orações e confianças reforçando a fé, analgésico único para dor tamanha, sem deixar de expor as chagas da irresponsabilidade de tantos na exploração corrosiva dos recursos naturais.

O rio tem sua nascente principal num olho d’água forte na comunidade de Palmital e faz suas deságuas no Jequitái, após curso curvoso, aconchegados na nossa região, pelo Santa Maria, Siriema, Riacho Fundo, Gamileiras, Traíras, todos amigos importantes para sua manutenção. Apesar dessa solidariedade, o punho impune do homem agride a natureza em Serra Velha, na manutenção de areeiras com cheiro de morte, esganando o curso d’água além da eliminação pecaminosa da mata ciliar, verdadeiro suicídio, para utilização absolutamente inadequada do solo.

A revolta da alma sertaneja chega nesses momentos a níveis escaldantes e, somente por temor a Deus, não se toma posições contundentes, vivenciando  a esperança inquebrantável do povo ribeirinho. Então, seu Mané Germano, chorando baixinho, deu de beber aos animais e, acocorado às margens das últimas gotas d’água, fugiu do mundo buscando o universo no seu “Pai Nosso” e somente retornou ao perceber o chamado do céu, no espocar de trovões, acompanhados de pingos intermitentes, grossos, cheios de alegrias, exímios lavadores dos pecados da humanidade.

Não demorou muito e o curso d’água cantava entre gargalhadas alucinadas de expectativas, uma música eivada de pura gratidão, na mágica do verde esperançoso, belíssimo, bailarino ao sabor dos ventos de boas vindas e a vida espalhou-se novamente pelas vazantes do São Lamberto. Nesses momentos, nossa tendência é nos atermos aos agradecimentos, olvidando as dores de feridas em processos de cicatrizações, o que de fato, é consolo, mas um erro. É preciso ser humilde sim, mas jamais esquecer as leis, guardiãs de sobrevivência.

Depois das primeiras chuvas, o Vale Lambertense renasceu em dias e noites repletas de certezas inundando corações de atitudes num devaneio entre homens terra e animais. O jeito alegre de ser espocava em cada canto, num mosaico de pura beleza e foi um dos motivos que levou o capitão Fabrício Mazarito Di Filiolli, de família Italiana, radicada há tempos no Sul de Minas, cultivando café, a comprar as terras de Ovídio Leão, confidente e amigo do Velho Mané Germano, já passado dos setenta, agora decidido a ir morar na cidade, sem a sua aprovação por ter, como dizia ele, “seu “imbigo interrado dessas banda”. Nada adiantou e a fazenda “Vinhático”, com seus oitenta alqueires de terra boa, muita benfeitoria e toda empastada, teve dono novo.

O capitão Di Filiolli, homem de fino trato, estatura mediana, cabelos lisos e a loirados penteados para o lado, olhos azuis de óculos branco com aros dourados, barba fechada e ruiva, sempre bem feita, sorriso meigo, gestos calmos e fala doce, era um apaixonado por Giuseppe Veerdi. Aos domingos, rotineiramente, inundava seus domínios com o som de Aida, La Traviata, Rigoletto, Óperas favoritas, difundidas por uma potente radiola “Philco”, novinha em folha, municiada por grandes baterias “Rayovak” para felicidade de seus ouvidos e sensibilidade de alma, mesmo sem ter ainda o privilégio da luz elétrica.

Sua esposa, Dona Honorinda Perpétua de Farias e Filiolli, de tipo físico aparentemente frágil e delicado avizinhava-se de um “bibelô” de porcelana chinesa nos mínimos detalhes de “boniteza”, criada certamente por mãos de artista inspirado, também se embriagava com a música do compositor romântico italiano. Nem por isso, deixava de mostrar sua liderança na administração da casa e educação da única filha, Giovanna Eduarda, na flor de seus dezoito anos, exímia nas artes dos bordados e pintura, mãos de deusa nos temperos, de fala fácil no português correto e leitora contumaz dos clássicos de Machado, Guimarães, Lima Barreto, Eça, Graciliano, José Lins do Rego, Aluísio de Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Bernardo Guimarães, além de ter convicções filosóficas voltadas para vida de Epicuro e seus ensinamentos, claramente uma intelectual cada vez mais sofisticada, morando nas barrancas do São Lamberto.

Tantos predicados alem do físico, atraíram olhares e desejos dos mais variados, incluindo aqueles do Doutor Ganimedes Santos de Carvalho, ilustre Jurisconsulto de Montes Claros, excêntrico e muito rico, famoso por suas contendas jurídicas e solteirice inveterada, cobiçado pelas moçoilas da sociedade, resistindo até agora, alvejado porem nos seus quarenta, bem no centro do coração  por aqueles dulcíssimos olhos claros, quando em ocasiões de algumas visitas resolvia questões advocatícias da fazenda Vinhático.

O motivo da parada da rural Willis verde e branca, com tração nas quatro rodas, último lançamento, na porta da casa grande, desta vez não tinha ligação com leis e códigos. Vinha oficialmente pedir ao capitão Di Filiolli, o direito de fazer a corte a sua filha, muito respeitosamente. O pedido foi aceito com orgulho dos pais e deixou o doutor advogado explodido em alegrias, acertando suas visitas para o último final de semana de cada mês.

O amor, de aljava repleta de setas em sua plena liberdade, não tinha medidas e acertou também o coração do jovem Antônio Henrique de Sá Villela, filho e único herdeiro de Bernardino Villela, homem de muitas posses da região, criador apurado da raça Nelore e, de laços estreitos com a família Di Filiolli.

À menina Giovanna Eduarda cabia a entrega de seu coração, fato respeitado pelos pais, apesar da torcida, discretamente, favorecer ao doutor Ganimedes.

Os dias foram passando e a decisão da pretendida cada vez mais ia amadurecendo, embalando seus sonhos na compra de itens para o enxoval, tudo muito bem demonstrado pelo simpático mascate Calisto Salviano de Jesus, o “Calistim Cheiroso”, moço de fala fácil, grande conhecedor da moda, sempre atualizado, cheirando a uma lavanda leve, de sorriso brejeiro, danado de bom fazedor de versos acompanhado de seu violão plangente mas, de beleza duvidosa, com seus nariz adunco, barba e bigodinho ralos, corpo franzino, óculos de tartaruga, cabelo ruivo parecendo um tantão de molinhas de relógios presos na cabeça achatada, sorriso frouxo de lábios finos e boca pequena, deixando salientar o canino lateral direito com uma obturação  de ouro. Tudo isso lhe fazia uma figura singular e querida, impulsionada por sua eterna alegria, montado em Rompe-Mundo, um burro ruão de viageiro fácil, seguido de Sereia e Safira, duas mulas de carga levando em suas “bruacas” as surpresas das novidades para os suspiros dos fregueses.

Pela terceira vez fazia a viagem atendendo aos pedidos de Giovanna Eduarda, hospedando-se na fazenda, tornando-se membro da rotina.

Na manhãzinha de domingo de céu “embruscado” para o gáudio de todos, o capitão e esposa, esperaram à mesa do café pela filha Giovanna e diante da demora,  dona Honorina resolveu verificar.

Ao retornar, descendo as escadas do segundo andar, trazia nas mãos um bilhete e no rosto uma palidez de morte. Em silêncio, o capitão leu sua própria sentença de lamúrias, destacadas na letra bonita da filha:

“PAPAI E MAMÃE, NÃO SEI SE POSSO PEDIR PERDÃO; MESMO ASSIM, PERDOEM-ME. O AMOR TEM RAZÕES ESTRANHAS SÓ ENTENDIDAS PELOS AMANTES.”

Nesse momento, Calistim Cheiroso e ela já iam há muito, dobrando a curva do além, na vivência de uma imensa paixão.

Membro da Academia Montes-Clarense de Letras*

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