O INEXPLICADO
por Aristônio Canela*
Quando ainda sob a luz de estrelas
preguiçosas, o velho Mané Germano rompeu o orvalho nas folhas do valente
brachiária amarelecido pela violência da seca do sertão norte mineiro para
encontrar “Passo preto e Canáro”, bois de há muito na mesma canga, não estava
preparado para viver tamanha decepção ao ver o último poço do São Lamberto
agonizando em sua pequena propriedade. Jogou o chapéu para traz, cuspiu de
lado, deu um longo suspiro e perguntou aos Santos o que fazer.
Padre Mariano, na missa do
domingo passado, também se arvorou na mesma pergunta pedindo a todos mais
orações e confianças reforçando a fé, analgésico único para dor tamanha, sem
deixar de expor as chagas da irresponsabilidade de tantos na exploração
corrosiva dos recursos naturais.
O rio tem sua nascente principal
num olho d’água forte na comunidade de Palmital e faz suas deságuas no
Jequitái, após curso curvoso, aconchegados na nossa região, pelo Santa Maria,
Siriema, Riacho Fundo, Gamileiras, Traíras, todos amigos importantes para sua
manutenção. Apesar dessa solidariedade, o punho impune do homem agride a
natureza em Serra Velha, na manutenção de areeiras com cheiro de morte,
esganando o curso d’água além da eliminação pecaminosa da mata ciliar,
verdadeiro suicídio, para utilização absolutamente inadequada do solo.
A revolta da alma sertaneja chega
nesses momentos a níveis escaldantes e, somente por temor a Deus, não se toma
posições contundentes, vivenciando a
esperança inquebrantável do povo ribeirinho. Então, seu Mané Germano, chorando
baixinho, deu de beber aos animais e, acocorado às margens das últimas gotas
d’água, fugiu do mundo buscando o universo no seu “Pai Nosso” e somente
retornou ao perceber o chamado do céu, no espocar de trovões, acompanhados de pingos
intermitentes, grossos, cheios de alegrias, exímios lavadores dos pecados da
humanidade.
Não demorou muito e o curso
d’água cantava entre gargalhadas alucinadas de expectativas, uma música eivada
de pura gratidão, na mágica do verde esperançoso, belíssimo, bailarino ao sabor
dos ventos de boas vindas e a vida espalhou-se novamente pelas vazantes do São
Lamberto. Nesses momentos, nossa tendência é nos atermos aos agradecimentos,
olvidando as dores de feridas em processos de cicatrizações, o que de fato, é
consolo, mas um erro. É preciso ser humilde sim, mas jamais esquecer as leis,
guardiãs de sobrevivência.
Depois das primeiras chuvas, o
Vale Lambertense renasceu em dias e noites repletas de certezas inundando
corações de atitudes num devaneio entre homens terra e animais. O jeito alegre
de ser espocava em cada canto, num mosaico de pura beleza e foi um dos motivos
que levou o capitão Fabrício Mazarito Di Filiolli, de família Italiana,
radicada há tempos no Sul de Minas, cultivando café, a comprar as terras de
Ovídio Leão, confidente e amigo do Velho Mané Germano, já passado dos setenta,
agora decidido a ir morar na cidade, sem a sua aprovação por ter, como dizia
ele, “seu “imbigo interrado dessas banda”. Nada adiantou e a fazenda “Vinhático”,
com seus oitenta alqueires de terra boa, muita benfeitoria e toda empastada,
teve dono novo.
O capitão Di Filiolli, homem de
fino trato, estatura mediana, cabelos lisos e a loirados penteados para o lado,
olhos azuis de óculos branco com aros dourados, barba fechada e ruiva, sempre
bem feita, sorriso meigo, gestos calmos e fala doce, era um apaixonado por
Giuseppe Veerdi. Aos domingos, rotineiramente, inundava seus domínios com o som
de Aida, La Traviata, Rigoletto, Óperas favoritas, difundidas por uma potente
radiola “Philco”, novinha em folha, municiada por grandes baterias “Rayovak”
para felicidade de seus ouvidos e sensibilidade de alma, mesmo sem ter ainda o
privilégio da luz elétrica.
Sua esposa, Dona Honorinda
Perpétua de Farias e Filiolli, de tipo físico aparentemente frágil e delicado
avizinhava-se de um “bibelô” de porcelana chinesa nos mínimos detalhes de
“boniteza”, criada certamente por mãos de artista inspirado, também se
embriagava com a música do compositor romântico italiano. Nem por isso, deixava
de mostrar sua liderança na administração da casa e educação da única filha,
Giovanna Eduarda, na flor de seus dezoito anos, exímia nas artes dos bordados e
pintura, mãos de deusa nos temperos, de fala fácil no português correto e
leitora contumaz dos clássicos de Machado, Guimarães, Lima Barreto, Eça,
Graciliano, José Lins do Rego, Aluísio de Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo,
José de Alencar, Bernardo Guimarães, além de ter convicções filosóficas
voltadas para vida de Epicuro e seus ensinamentos, claramente uma intelectual
cada vez mais sofisticada, morando nas barrancas do São Lamberto.
Tantos predicados alem do físico,
atraíram olhares e desejos dos mais variados, incluindo aqueles do Doutor
Ganimedes Santos de Carvalho, ilustre Jurisconsulto de Montes Claros,
excêntrico e muito rico, famoso por suas contendas jurídicas e solteirice
inveterada, cobiçado pelas moçoilas da sociedade, resistindo até agora,
alvejado porem nos seus quarenta, bem no centro do coração por aqueles dulcíssimos olhos claros, quando
em ocasiões de algumas visitas resolvia questões advocatícias da fazenda
Vinhático.
O motivo da parada da rural
Willis verde e branca, com tração nas quatro rodas, último lançamento, na porta
da casa grande, desta vez não tinha ligação com leis e códigos. Vinha
oficialmente pedir ao capitão Di Filiolli, o direito de fazer a corte a sua
filha, muito respeitosamente. O pedido foi aceito com orgulho dos pais e deixou
o doutor advogado explodido em alegrias, acertando suas visitas para o último
final de semana de cada mês.
O amor, de aljava repleta de
setas em sua plena liberdade, não tinha medidas e acertou também o coração do
jovem Antônio Henrique de Sá Villela, filho e único herdeiro de Bernardino
Villela, homem de muitas posses da região, criador apurado da raça Nelore e, de
laços estreitos com a família Di Filiolli.
À menina Giovanna Eduarda cabia a
entrega de seu coração, fato respeitado pelos pais, apesar da torcida,
discretamente, favorecer ao doutor Ganimedes.
Os dias foram passando e a
decisão da pretendida cada vez mais ia amadurecendo, embalando seus sonhos na
compra de itens para o enxoval, tudo muito bem demonstrado pelo simpático
mascate Calisto Salviano de Jesus, o “Calistim Cheiroso”, moço de fala fácil,
grande conhecedor da moda, sempre atualizado, cheirando a uma lavanda leve, de
sorriso brejeiro, danado de bom fazedor de versos acompanhado de seu violão
plangente mas, de beleza duvidosa, com seus nariz adunco, barba e bigodinho
ralos, corpo franzino, óculos de tartaruga, cabelo ruivo parecendo um tantão de
molinhas de relógios presos na cabeça achatada, sorriso frouxo de lábios finos
e boca pequena, deixando salientar o canino lateral direito com uma obturação de ouro. Tudo isso lhe fazia uma figura
singular e querida, impulsionada por sua eterna alegria, montado em
Rompe-Mundo, um burro ruão de viageiro fácil, seguido de Sereia e Safira, duas
mulas de carga levando em suas “bruacas” as surpresas das novidades para os
suspiros dos fregueses.
Pela terceira vez fazia a viagem
atendendo aos pedidos de Giovanna Eduarda, hospedando-se na fazenda,
tornando-se membro da rotina.
Na manhãzinha de domingo de céu
“embruscado” para o gáudio de todos, o capitão e esposa, esperaram à mesa do
café pela filha Giovanna e diante da demora,
dona Honorina resolveu verificar.
Ao retornar, descendo as escadas
do segundo andar, trazia nas mãos um bilhete e no rosto uma palidez de morte.
Em silêncio, o capitão leu sua própria sentença de lamúrias, destacadas na
letra bonita da filha:
“PAPAI E MAMÃE, NÃO SEI SE POSSO
PEDIR PERDÃO; MESMO ASSIM, PERDOEM-ME. O AMOR TEM RAZÕES ESTRANHAS SÓ
ENTENDIDAS PELOS AMANTES.”
Nesse momento, Calistim Cheiroso
e ela já iam há muito, dobrando a curva do além, na vivência de uma imensa
paixão.
Membro da Academia
Montes-Clarense de Letras*