quinta-feira, 1 de novembro de 2018

- Crônica -

A ECHARPE
por Aristônio Canela*


Ao acaso, uma rainha chinesa descobriu a seda quando tomava chá em baixo de uma amoreira no jardim de seu palácio e um casulo caiu dentro       da xícara soltando seu fio. Depois, a Imperatriz Hsi Ling Shi, inventou o tear para produzir o tecido e todos esses segredos foram guardados pelos chineses por eternidades, retidos nas mãos e mentes de escolhidos. Somente privilegiados podiam conviver com tamanho poder, dada sua importância no comércio mundial e a indústria do país tirava proveito disso com intensidade e absoluta soberania.

A seda é uma fibra de origem animal, resistente, afeita a tingimentos, disponível para estampas de rara beleza e produzida na fase de encasulamento, quando a lagarta completa seu ciclo de transformação em mariposa.

A obtenção de ovos selecionados, criação adequada e o cultivo da amoreira cujas folhas, alimentação imprescindível para as lagartas, são pilares fundamentais na obtenção de um bom produto.

No Brasil as atividades industriais iniciaram-se no século XIX durante o reinado de Pedro I com a “IMPERIAL COMPANHIA SEROPÉDICA FLUMINENSE” e hoje, os bichos da seda são criados por pequenos e médios agricultores em galpões e os casulos entregues às indústrias para beneficiamento fortalecendo a produção principalmente no estado do Paraná.

Nada disso, porém, comporia a história, tão preciosa em detalhes, não fossem Zhao Ming e Yun Shui, dois monges primários, irmãos, pertencentes ao mosteiro de Palcho, edificado na cidade  de Gyantse, com sua estupa Kunbun, edifício em forma de torre cônica,  centro da escola Sakya do budismo tibetano.

Os jovens em formação foram prometidos pela família de camponeses ao templo, contra suas vontades, mas, obedientes, assumiram os desejos do pai, até mesmo para diminuir bocas na alimentação.

A vida de preces, estudos do budismo e meditações, não conseguiram, entretanto, apaziguar suas almas sequiosas de aventuras, quanto mais sabidos ficavam.

A regra de ouro do Mosteiro era a absoluta abstinência sexual, importante via de canalização energética para compreensão dos ensinamentos do senhor Buda.

Naquela tarde, os dois, dentro da mais pura humildade, foram designados para buscarem, na pequena feira do largo à frente do edifício principal, frutas e verduras, doadas por abnegados e fiéis feirantes, todos praticantes dos ensinamentos do “Iluminado”.

Quis o destino, com seu viés galhofeiro, deixar bem às vistas Hui Ying e Ling Su, jovens de peles leitosas e tenras, olhos expressivos, sorrisos discretos e corações palpitando na mais pura ousadia juvenil; Filhas de Wauf Xenpin, homem honrado da comunidade, agricultor por natureza, trazendo na expressão severa um grande mistério, o que não impediu a formação imediata de uma imensa onda elétrica amorosa entre os quatro corações endoidecidos. Esse sentimento avassalador rompeu barreiras e ninguém viu as figuras se esgueirarem-se nas sombras da noite, numa vazão de intenso banquete carnal, dias após dias, desafiando todas as possíveis margens de segurança e pondo em risco integridades físicas. Além disso, despertou-se a cobiça sentimento tão mundano, quando os dois rapazes descobriram o grande segredo do velho comerciante; era o verdadeiro guardião “de ovos do bicho da seda.”

O Mosteiro, em poucos movimentos da sua polícia, identificou todos os passos da doce e irresponsável juventude e os dois jovens viram-se num átimo, condenados sumariamente à morte pelo grave crime de “fornicação”, pondo-se à disposição do carrasco na masmorra da cidade.

Mais uma vez o destino se fez presente e numa madrugada a porta do calabouço foi aberta por suas amadas vestidas de guardas depois de deixarem os verdadeiros, adormecidos por um chá poderoso.

Sem tempo a perder, além da liberdade, as moças presentearam-lhes, dentro de uma sacola de couro, ovos do bicho da seda, uns verdadeiros passaportes para outra vida fora do Tibet e em contrapartida, certificaram-se das sementes implantadas em seus úteros.

O instinto de sobrevivência falou alto e os monges, após enfrentarem a fúria da natureza e dos sabujos do Mosteiro, chegaram a Waithuam-Guilim, pequena cidade agrícola perto de Guangzhou, onde estropiados, esconderam para se recuperarem, deixando o tempo escoar na sua sabedoria.

Duas semanas depois, discretamente, sempre caminhando à noite foram até o Porto de Malan e conseguiram embarcar no “TREVO DE OLIVEIROS”, navio mercante português, com destino a Lisboa.

Assim foi, portanto, que no início da era cristã, dois monges levaram para a Europa o segredo desvendado do “fio da seda”, iniciando a industrialização, depois de identificadas as melhores espécies.

A fazenda “Porto Rico” de propriedade do Coronel Cleonício Bragamontes da Fonseca, homem de caráter irretocável, duro em suas decisões, católico fervoroso, arauto dos ditames da tradicionalíssima família Mineira, rico, de pele morena, cabelos curtos e bastos bigodes negros, muito bem aparados semanalmente na barbearia Matrioska, por Hermano Papa Defunto, forte feito cerne de aroeira, acabado de chegar aos cinqüenta, bonitão, grande representante da macheza e virilidade humana, casado há vinte e cinco anos com Dona Rosileiva Maria de Argantes, de descendência sulina, alva feito leite, cabelos acobreados, de trato refinado, ligada às lides do lar, sempre discreta e cordata, respeitadora das vontades do marido, teve por um bom tempo, dificuldades para adaptação no Norte de Minas, com o clima principalmente, mãe de dois filhos e uma filha, estudantes em Montes Claros, propondo-lhe assim, mais tempo para cuidar do Coronel, seu grande amor, não se vendo outro casal mais estável e de comportamento tão seguro e exemplar quanto aquele.

É bem verdade, em crescentes comentários no salão de Lilico Mimoso, à pés de ouvidos, sobre o visgo corrosivo da rotina na tristeza de olhares da dama, caindo lentamente num suposto distanciamento, fortemente combatido por Padre Mariano, em suas predigas, num púlpito absolutamente adepto, mesmo a preço alto, da permanente união de um casal, não correspondendo a opinião cáustica do famoso cabeleireiro, defensor da total liberdade de escolhas, sem barreira ou preconceitos.

Especialmente naqueles meses, via-se Lilico num comportamento diferente, de euforias extravagantes, sempre acompanhado de sua “echarpe” de seda pura chinesa, achegada ao pescoço como se fosse um troféu conquistado depois de peleja intensa, justificada  pelo cheiro de um amor imenso vivido sobre os auspícios de verdades secretíssimas.

A situação claramente afetava Leidinha Gaga, que jamais escondeu sua dedicação sentimental ao Mimoso, jurada para eternidade, nesse clima de marcha e contra marchas das vias tortas do tempo.

No próximo final de semana seria realizada a festa maior do ano do povoado com um baile de gala, no requintado salão paroquial e apresentação da famosa atriz e cantora Leila Britto no belíssimo show “Feitiço do Tempo”, criado a caráter por seu escritor favorito.

A região efervescia nos mínimos detalhes dos preparativos, nas decorações, ensaios, repetindo e repetindo mínimos detalhes para o brilho inundar as noites e invejar o sol dos dias.

Na sexta, cavalgada com mais duzentos participantes, churrasco na praça e muito forró à noite com Tavinho dos teclados. No sábado pela manhã e tarde, barraquinhas, comidas típicas e corrida de argolinhas com três televisões de prêmio para os primeiros colocados; à noite o pomposo baile e no domingo a santa missa com Padre Mariano e o senhor bispo de Montes Claros.

A presença do Coronel Cleonício e a esposa na festança vinha sendo ameaçada por uma virose com tosses e espirros altamente incomodantes, amparados por seus lenços de linho e bravamente combatidos pelos chás milagrosos de Sá Olegária, na esperança de melhoras.

Seu terno mais bonito passou a noite de sexta nas mãos de dona Cota costureira para pequenos ajustes e, na madrugada, só as estrelas viram uma sombra deslizante tomá-lo por entre as mãos.

Lilico, depois de intenso movimento no salão, já quase saindo para o baile, não encontrou sua echarpe no guarda roupas e mesmo de bico grande, sentindo-se completamente nu, marcou presença numa mesa defronte ao coronel e família, ocupantes do lugar de honra.

 A música teceu uma teia de languidez quando a cantora interpretou “Magia”, sua preferida e os pares rodopiavam no salão, agarradinhos ao sabor das notas musicais, quando uma repentina crise de tosse seca sacudiu o coronel. Imediatamente buscou na algibeira do paletó seu lenço protetor e teve uma grande surpresa para si, esposa e olhos esbugalhados de Lilico Mimoso. De lá, saiu escorregando por entre seus dedos, num requinte de rebolamentos sensuais, a “echarpe” do cabeleireiro, com a seda viva envolvida em seu punho de puro macho, num abraço constritivo de sucuri e o tempo parou para ver o espanto e uma lágrima lenta desbravar a maquiagem de dona Rosileiva.  Altiva feito uma rainha, sem perder a compostura, olhando fixamente para Lilico, rasgou lentamente o tecido em ódio profundo nos pedaços miúdos e jogou tudo por debaixo da mesa. Depois, tomou o braço do marido e achegou-se a ele num “GRÃ FINALE”

Interessante! Somente no final deste texto percebo o quanto foi marcante a ausência de Leidinha Gaga no salão de festas.



Membro da Academia Montes-Clarense de Letras.*

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