por Aristônio
Canela*
Ao acaso, uma rainha chinesa descobriu
a seda quando tomava chá em baixo de uma amoreira no jardim de seu palácio e um
casulo caiu dentro da xícara
soltando seu fio. Depois, a Imperatriz Hsi Ling Shi, inventou o tear para
produzir o tecido e todos esses segredos foram guardados pelos chineses por
eternidades, retidos nas mãos e mentes de escolhidos. Somente privilegiados
podiam conviver com tamanho poder, dada sua importância no comércio mundial e a
indústria do país tirava proveito disso com intensidade e absoluta soberania.
A seda é uma fibra de origem animal,
resistente, afeita a tingimentos, disponível para estampas de rara beleza e
produzida na fase de encasulamento, quando a lagarta completa seu ciclo de
transformação em mariposa.
A obtenção de ovos selecionados,
criação adequada e o cultivo da amoreira cujas folhas, alimentação
imprescindível para as lagartas, são pilares fundamentais na obtenção de um bom
produto.
No Brasil as atividades
industriais iniciaram-se no século XIX durante o reinado de Pedro I com a
“IMPERIAL COMPANHIA SEROPÉDICA FLUMINENSE” e hoje, os bichos da seda são
criados por pequenos e médios agricultores em galpões e os casulos entregues às
indústrias para beneficiamento fortalecendo a produção principalmente no estado
do Paraná.
Nada disso, porém, comporia a
história, tão preciosa em detalhes, não fossem Zhao Ming e Yun Shui, dois
monges primários, irmãos, pertencentes ao mosteiro de Palcho, edificado na
cidade de Gyantse, com sua estupa
Kunbun, edifício em forma de torre cônica,
centro da escola Sakya do budismo tibetano.
Os jovens em formação foram prometidos
pela família de camponeses ao templo, contra suas vontades, mas, obedientes,
assumiram os desejos do pai, até mesmo para diminuir bocas na alimentação.
A vida de preces, estudos do budismo e
meditações, não conseguiram, entretanto, apaziguar suas almas sequiosas de
aventuras, quanto mais sabidos ficavam.
A regra de ouro do Mosteiro era a
absoluta abstinência sexual, importante via de canalização energética para
compreensão dos ensinamentos do senhor Buda.
Naquela tarde, os dois, dentro da mais
pura humildade, foram designados para buscarem, na pequena feira do largo à
frente do edifício principal, frutas e verduras, doadas por abnegados e fiéis
feirantes, todos praticantes dos ensinamentos do “Iluminado”.
Quis o destino, com seu viés
galhofeiro, deixar bem às vistas Hui Ying e Ling Su, jovens de peles leitosas e
tenras, olhos expressivos, sorrisos discretos e corações palpitando na mais
pura ousadia juvenil; Filhas de Wauf Xenpin, homem honrado da comunidade,
agricultor por natureza, trazendo na expressão severa um grande mistério, o que
não impediu a formação imediata de uma imensa onda elétrica amorosa entre os
quatro corações endoidecidos. Esse sentimento avassalador rompeu barreiras e
ninguém viu as figuras se esgueirarem-se nas sombras da noite, numa vazão de
intenso banquete carnal, dias após dias, desafiando todas as possíveis margens
de segurança e pondo em risco integridades físicas. Além disso, despertou-se a
cobiça sentimento tão mundano, quando os dois rapazes descobriram o grande
segredo do velho comerciante; era o verdadeiro guardião “de ovos do bicho da
seda.”
O Mosteiro, em poucos movimentos da
sua polícia, identificou todos os passos da doce e irresponsável juventude e os
dois jovens viram-se num átimo, condenados sumariamente à morte pelo grave
crime de “fornicação”, pondo-se à disposição do carrasco na masmorra da cidade.
Mais uma vez o destino se fez presente
e numa madrugada a porta do calabouço foi aberta por suas amadas vestidas de
guardas depois de deixarem os verdadeiros, adormecidos por um chá poderoso.
Sem tempo a perder, além da liberdade,
as moças presentearam-lhes, dentro de uma sacola de couro, ovos do bicho da
seda, uns verdadeiros passaportes para outra vida fora do Tibet e em
contrapartida, certificaram-se das sementes implantadas em seus úteros.
O instinto de sobrevivência falou alto
e os monges, após enfrentarem a fúria da natureza e dos sabujos do Mosteiro,
chegaram a Waithuam-Guilim, pequena cidade agrícola perto de Guangzhou, onde
estropiados, esconderam para se recuperarem, deixando o tempo escoar na sua
sabedoria.
Duas semanas depois,
discretamente, sempre caminhando à noite foram até o Porto de Malan e
conseguiram embarcar no “TREVO DE OLIVEIROS”, navio mercante português, com
destino a Lisboa.
Assim foi, portanto, que no início da
era cristã, dois monges levaram para a Europa o segredo desvendado do “fio da
seda”, iniciando a industrialização, depois de identificadas as melhores
espécies.
A fazenda “Porto Rico” de propriedade
do Coronel Cleonício Bragamontes da Fonseca, homem de caráter irretocável, duro
em suas decisões, católico fervoroso, arauto dos ditames da tradicionalíssima
família Mineira, rico, de pele morena, cabelos curtos e bastos bigodes negros,
muito bem aparados semanalmente na barbearia Matrioska, por Hermano Papa
Defunto, forte feito cerne de aroeira, acabado de chegar aos cinqüenta,
bonitão, grande representante da macheza e virilidade humana, casado há vinte e
cinco anos com Dona Rosileiva Maria de Argantes, de descendência sulina, alva
feito leite, cabelos acobreados, de trato refinado, ligada às lides do lar,
sempre discreta e cordata, respeitadora das vontades do marido, teve por um bom
tempo, dificuldades para adaptação no Norte de Minas, com o clima
principalmente, mãe de dois filhos e uma filha, estudantes em Montes Claros,
propondo-lhe assim, mais tempo para cuidar do Coronel, seu grande amor, não se
vendo outro casal mais estável e de comportamento tão seguro e exemplar quanto
aquele.
É bem verdade, em crescentes
comentários no salão de Lilico Mimoso, à pés de ouvidos, sobre o visgo
corrosivo da rotina na tristeza de olhares da dama, caindo lentamente num
suposto distanciamento, fortemente combatido por Padre Mariano, em suas
predigas, num púlpito absolutamente adepto, mesmo a preço alto, da permanente
união de um casal, não correspondendo a opinião cáustica do famoso
cabeleireiro, defensor da total liberdade de escolhas, sem barreira ou
preconceitos.
Especialmente naqueles meses, via-se
Lilico num comportamento diferente, de euforias extravagantes, sempre
acompanhado de sua “echarpe” de seda pura chinesa, achegada ao pescoço como se
fosse um troféu conquistado depois de peleja intensa, justificada pelo cheiro de um amor imenso vivido sobre os
auspícios de verdades secretíssimas.
A situação claramente afetava Leidinha
Gaga, que jamais escondeu sua dedicação sentimental ao Mimoso, jurada para
eternidade, nesse clima de marcha e contra marchas das vias tortas do tempo.
No próximo final de semana seria realizada
a festa maior do ano do povoado com um baile de gala, no requintado salão
paroquial e apresentação da famosa atriz e cantora Leila Britto no belíssimo
show “Feitiço do Tempo”, criado a caráter por seu escritor favorito.
A região efervescia nos mínimos
detalhes dos preparativos, nas decorações, ensaios, repetindo e repetindo
mínimos detalhes para o brilho inundar as noites e invejar o sol dos dias.
Na sexta, cavalgada com mais duzentos
participantes, churrasco na praça e muito forró à noite com Tavinho dos
teclados. No sábado pela manhã e tarde, barraquinhas, comidas típicas e corrida
de argolinhas com três televisões de prêmio para os primeiros colocados; à
noite o pomposo baile e no domingo a santa missa com Padre Mariano e o senhor
bispo de Montes Claros.
A presença do Coronel Cleonício e a
esposa na festança vinha sendo ameaçada por uma virose com tosses e espirros
altamente incomodantes, amparados por seus lenços de linho e bravamente
combatidos pelos chás milagrosos de Sá Olegária, na esperança de melhoras.
Seu terno mais bonito passou a noite
de sexta nas mãos de dona Cota costureira para pequenos ajustes e, na
madrugada, só as estrelas viram uma sombra deslizante tomá-lo por entre as
mãos.
Lilico, depois de intenso movimento no
salão, já quase saindo para o baile, não encontrou sua echarpe no guarda roupas
e mesmo de bico grande, sentindo-se completamente nu, marcou presença numa mesa
defronte ao coronel e família, ocupantes do lugar de honra.
A música teceu uma teia de
languidez quando a cantora interpretou “Magia”, sua preferida e os pares
rodopiavam no salão, agarradinhos ao sabor das notas musicais, quando uma
repentina crise de tosse seca sacudiu o coronel. Imediatamente buscou na algibeira
do paletó seu lenço protetor e teve uma grande surpresa para si, esposa e olhos
esbugalhados de Lilico Mimoso. De lá, saiu escorregando por entre seus dedos,
num requinte de rebolamentos sensuais, a “echarpe” do cabeleireiro, com a seda
viva envolvida em seu punho de puro macho, num abraço constritivo de sucuri e o
tempo parou para ver o espanto e uma lágrima lenta desbravar a maquiagem de
dona Rosileiva. Altiva feito uma rainha,
sem perder a compostura, olhando fixamente para Lilico, rasgou lentamente o
tecido em ódio profundo nos pedaços miúdos e jogou tudo por debaixo da mesa.
Depois, tomou o braço do marido e achegou-se a ele num “GRÃ FINALE”
Interessante! Somente no final deste
texto percebo o quanto foi marcante a ausência de Leidinha Gaga no salão de
festas.
Membro da Academia
Montes-Clarense de Letras.*