70 ANOS
* Raquel Mendonça
Ray foi um raio de luz fulgurante que passou por
minha vida de apoiadora das artes e artistas desde muito cedo na cidade, de
forma intensa e serena, ao mesmo tempo! Nada tenho a dizer - nem o permito ou
algum dia permiti - contra ele em relação a mim, ou em relação a quem quer que
seja, porque era uma pessoa totalmente do bem e se algum mal fez, em sua curta
e mais que curtida, sofrida, bem sucedida vida, foi somente a ele mesmo!
Nascido Raymundo Felicíssimo Colares na vizinha Grão
Mogol, o "Diamante Histórico Regional", em 25 de abril de 1944, filho
de Felicíssimo Ferreira Colares e Joana Natalina Colares, a muito querida Dona
Joaninha, que me acordava sempre no meio da noite, ao telefone, com a sua aflição
natural de mãe, para me pedir, "mais uma vez, minha filha, por favor"
socorresse ou resgatasse Ray de complicações (algumas "bravas") em
bares e mais bares montesclarinos!
Eu me vestia rapidamente e saia sozinha, a pé,
madrugada adentro, naquele tempo de tranquilidade, quando a violência ainda
morava longe, bem longe da cidade, até o bar/restaurante onde e como ele
estivesse, para resolver o que tivesse de resolver e, carinhosamente, tirá-lo
dali, com o maior amor de irmã do mundo, mas, sei, ele considerava, de certa
forma, pouco o que tinha em amizade a lhe oferecer. E do bar saíamos pelas
ruas, andando, muitas vezes, longas distâncias, eu um pouco atrás dele, de
andar mais célere, apressado, parando apenas em praças, onde dele ouvia coisas
ou considerações no mínimo brilhantes, sublimes, até, ditas ou escritas somente
por gênios entre os mais excepcionais - de todos os tempos! - da história da
humanidade! O mesmo disse dele médico chileno que o atendeu nas últimas horas
terrenas (horas muitas, o coração pulsando, batendo ainda, ou se debatendo, em
suas derradeiras chamas, descendo ou "subindo" deslumbrante cachoeira
acima, na direção do imenso brilho celestial que dele subitamente se
aproximava...), no Hospital São Lucas, depois da tragédia hospitalar no ex e inóspito
Prontomente, onde se auto internara, durante crise maior, e o fogo que partiu
da ponta do cigarro a ele carinhosamente levado - a seu pedido! - quase
inteiramente o consumiu, chegando a 80% do corpo.
"Sou homem da mesma maneira/ Quero uma mulher/Um
grande amor/Um filho", escreveu um dia - à noite - e me entregou o papel,
com mais um desenho (retrato) meu! Sei quanto sofreu de preconceitos, desprezo,
entre pessoas improváveis também, e dificuldades de toda ordem! Na verdade,
somente eu e alguns poucos amigos do peito "entendíamos" bem e
admirávamos de verdade "aquele cara", muito antes de a sua arte alçar
vôos maiores, explodindo país e mundo afora, como um foguete neoconcretista que
se aliava às linguagens geométricas, embasando em paradoxos o construtivismo
nada ortodoxo!...
Tornei-me sua "protetora" ou "Anjo da
Guarda", como me chamavam alguns poucos, em reconhecimento e gratidão, e
tudo fazia para amenizar os seus muitos sofrimentos! Ele me respeitava tanto
que apenas bebia em minha presença (e olha que não conheço ainda nem vou
conhecer nunca o gosto de bebidas alcoólicas, imagine então de outros
"ingredientes", sabidamente em nada saudáveis!). Mas muitas vezes eu
o encontrei no pior estado, vítima do - múltiplo e vezes excessivo - consumo,
com destaque para a bebida, embora nada me desanimasse ou dele me fizesse
desistir, continuando a fazer o máximo e o melhor possível por ele! "Sou
sua irmã de espírito, alma e coração", lhe dizia! Sabe que pode contar
comigo, Ray, que pode e poderá sempre...! Só não sabia que o "para
sempre" entre nós seria tão rápido, vertiginoso, duraria tão pouco!...
Quando trabalhava no Núcleo de Assistência
Empresarial (à Pequena e Média presa), o NAE/MG, ele me visitava com frequência
ali, situado que era na mesma rua de sua grande família, a Dr. Santos, vestido
como um príncipe ou aos pedaços, que eu recebia da mesma maneira, acolhia,
recolhia e juntava, um a um, até vê-lo novamente inteiro e feliz, pelo menos
quase completamente assim!
Da Papelaria de Nice David e seus muitos objetos,
todas as nuances ou cores artísticas, para o Pelourinho histórico e inspirador
de Salvador, onde nasceram os seu lindos "Alagados" e de lá para o
Rio, que sabia ser a capital cultural do país, em que trabalhou como desenhista
de jóias na H. Stern, entre outros ofícios. "Não sei se fico no Rio ou se
volto para Montes Claros", pensava, poetava, constantemente! "Não sei
se vou ou se fico". Aí ia e vinha para a sua amada Montes Claros. Voltava
e ficava. E tornava a ir e a voltar! (...) "Voltar, rever os
amigos...(...) Carne seca na janela.// "Sair de novo.../ Restar./ Prá que
saber aonde ir?", concluía, em poesia. "Modificações/Modificar
(transformar) as ações/ Ir embora?"/(...) Eu não sei por quanto tempo
ainda ... vou pensar...", filosofava, poetizava, profetizava, em inúmeras
pérolas poéticas, maioria delas perdida em preciosa agenda deixada esquecida -
o que tanto lamentou! - em praça do Rio, mas muitas publicadas por nós em
páginas do antigo Diário de Montes Claros, junto a inúmeros desenhos seus, como
o "Pindorama I", "Pindorama II", também aos pedaços, vítima
das inesperadas chuvas de agosto de 84 (o telhado colonial caindo ao lado...),
que ilustrou a matéria "A Sensibilidade com Colorida Linguagem Pop",
publicada em Suplemento do Jornal Estado de Minas, algum tempo depois de sua
tristíssima, assustadora, e tão sentida, chorada partida!
Fez no Rio de Janeiro vários Cursos de Arte, mas
livres, lembrando, em suas posições e decisões, parte de poema seu "(...)
Na janela, o horizonte, a LIBERDADE de uma estrada que eu posso ver",
abandonando, como outras, a Escola de Belas Artes, quando fez criativo contato
artístico com Ivan Serpa.
Em 66, Ray Collares integrava a jovem
"Vanguarda Brasileira de Arte", junto ao amigo Antônio Manuel, Hélio
Oiticica, Lígia Pape e muitos outros, participando, no MAM (Museu de Arte
Moderna do Rio), da Mostra "Nova Objetiva Brasileira", assim como da
Coletiva "Galeria Contemporânea de Campinas"... Foi contemplado com
premiações e mais premiações, como o "Prêmio de Pintura - Salão Esso de
Artista Jovem" - MAM/RJ, e não parou mais...
"Ainda vou entender esse cara", se referia
sempre a um dos seus artistas-referência, o Mondrian, e a sua também nova ideia
plástica que a arte concreta pelo mundo inteiro lançara, apregoara...
Ministrou aulas de "Artes e Atelier
Livre", além de "Desenho" em Colégio de Niterói. Em sua MOC
querida, lecionou, além de Desenho, Pintura em Tela, Artesanato, Composição
Artística e História da Arte no Conservatório Lorenzo Fernândez, em seu antigo
prédio da Dr. Veloso, onde parede por ele pintada - e que cobriram absurdamente
de tinta não artística depois - merece minuciosa, detalhada prospecção, bem
como recuperação ou restauração cuidadosa!
Do Rio a Teresópolis, depois aos Estados Unidos,
viagem que ganhou como prêmio pela melhor Exposição Individual no Rio de
Janeiro, em 1970, via IBEU e ITT... Dali ao mundo todo foi só mais um salto, um
pulo, considerado "um dos vinte maiores e mais importantes artistas
plásticos contemporâneos do mundo", com muita justiça, na grande
"Coletiva Modernidade" de São Paulo, em 1988...
Pintava, em princípio, paisagens, naturezas...
(casas coloniais e outras mais), para sobreviver aos infindos e infinitos,
duros problemas, apuros! E, a partir do seu amor às praças, onde ele se
entregava ao banco mais próximo, convidativo e amigo, no meio do Rio, teve a
sua atenção, de repente, junto ao seu olhar único e talento extraordinário
definitivamente voltados e fixados nos ônibus urbanos e sua dinâmica veloz , -
de modo especial em suas bem definidas e coloridas faixas laterais -, que
passavam vertiginosamente à sua frente - foi ele a nos dizer! -, convertendo-as
em arte genialmente poética e geométrica, e que só grandes colecionadores e
museus no país e no mundo têm o privilégio de ter! Os ônibus das ruas
"corridas" e surpreendentemente coloridas do Rio se transformaram,
então, por suas mãos e constante, habilidoso movimento, em telas tecidas com
tintas e pincéis próprios de tempos de extrema curiosidade e mudanças estruturais!
Era o novo, a modernidade chegando, como um mar se pondo na areia, cheio de
curvas e cortes profundos no meio do voluptuoso caminho!...
Premiado com viagem à Itália (1971) - e foram tantos e tantos os seus grandes
prêmios, aqui e alhures! -, teve o fogo novamente por "companhia" -
que, parecia, o perseguia -, em caso a nós contado, como tantos em segredo
guardados, em longo tempo de confidências, sem jamais
"inconfidências" com insensíveis ou, no mínimo, despreparados para ser
e aceitar, dominados por inúmeros preconceitos.
Depois de sua ida, fui eu que passei a senti-lo como
que "andando um pouco atrás de mim" (chegava a "ouvir" seus
passos peculiares!...), então um autêntico "Anjo da Guarda", lá do
infinito e eterno mar/lar azul, sempre que a tristeza , alguma maldade ou
perseguição feriam o meu coração! E até hoje o sinto presente, como um presente
de Deus, ao meu lado, nos momentos de alguma dor ou desalento! Hoje é você a me
olhar e proteger, eu sei, junto a tantas almas boas e benditas dos nossos nos
céus!...
Na sua bela "Cantiga Caipira" que entre
tantas publiquei: "Lá no meio da caatinga/ No cerrado, no sertão/Um rio,
um pequizeiro/Canabrava..." Mas não adianta pedir "prá não mais
chorar": "Você não pediu mas quis/estar no meio da Terceira Margem do
rio/ (...) Onde não tem ir nem chegar", porque você sempre foi de provocar
emoção, rios e rios de lágrimas de emoção, da mais pura, autêntica e
inesquecível emoção, daquelas que se fixam, para sempre, no escondido,
recôndito da alma; no canto profundo e inatingível do coração!...
No começo de sua bela "Cantiga" ou poema:
"Lá no meio da caatinga/ um rio, uma pitombeira/ nesta longa estrada da
vida/ Uma cantiga, uma ilusão..." que teve fim naquele inesperado 31 de
março de 1986, de que não me lembro de esquecer, mas preciso, "prá não
mais chorar".
Você sabe bem, no entanto, que não foi mesmo um fim,
mas tão somente - e para sempre - um grande começo ou recomeço, porque os
"raios de luz" assim tão legítimos, impetuosos e veementes não têm
nunca um ponto ou traço final...
Parabéns prá você, nesta data, Querido, meu muito Amado Amigo-Irmão!...
Beijos eternos.
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OBS.: Konstantin Christroff tinha toda razão ao
dizer que "Ray Collares era tão grande pintor quanto poeta", deixando
escritos em folhas soltas de papel poemas, no mínimo, esplêndidos! Os que
sobreviveram, manchados ou parcialmente dilacerados pela intempérie repentina -
as chuvas de agosto de 84 -, deixei com a amiga e colega jornalista Márcia
Braga, para não sofrer, sempre que os via, em uma das muitas "pastas
literárias ou artísticas" que tinha em casa.