O SEGUNDO
LACRIMÁRIO DE ANTÔNIA FILHA
Fabiano Lopes
de Paula*
Para M.
Lourdes Lopes Braga e Conça Lopes
- FRAGMENTO 1
-
Foi a Lourdes
, da janela, que primeiro a avistou. Vinha com o seu cache-nez de seda
encarnado que lhe cobria o colo e a alma. Trazia, em uma das mãos, uma caixa de
música em formato de gaiola, com um cantante pássaro e, na outra, um relógio de
algibeira, que preferiu trazê-lo fechado em sua mão e que, de vez em quando,
abria para ver as iniciais AETC, gravadas goticamente no verso.
Assungou a
saia e se pôs para dentro de casa em passos lerdos, afinal havia duas noites em
claro.
- O AMARGOR -
Entrou,
sentou-se. Nem chegara a reparar que o pequeno sebo estava manco de uma das
pernas. Olhou os sobrinhos e voltou a olhar o velho relógio e admirou que, em
seu interior, não havia retrato ou nome, seja dela, e nenhum traço daquele
amor, portanto, livre das avanias da traição.
Ousou
solfejar, entre os dentes, aquela modinha, das noites enluaradas, cantada por
todos naquelas ruas de baixo, tão antigas: “O meu viver hoje é triste, não é
viver é penar...” e mesmo que não fosse um estribilho, repetia sempre este
pedaço. E assim ficara por um bom tempo.
Chegou a
enjeitar o escalfado de ovos, que Bernarda lhe trouxera em sua ‘beca’
esmaltada, mesmo temperado com muito basilicão e coentro, conforme ela mesma
pedira. Dinha, a Bernarda, postada ao seu lado, ainda insistia, “Coma um pouco,
Ná!” ,“Esper’inda !!!” - respondia.
Atreveu-se a
comer, mesmo sabendo que nada lhe descia e, em cada colherada, alimentava o seu
olhar para mais longe.
Olhou as
paredes, olhou a única estampa de santo que pendia, um retrato dos sobrinhos
Bibigo e Antenor com uma cabra e riu das Folhas de Fortuna que Dinha Bernarda pendurara na
parede, algumas delas, já com os brotos
periféricos, e não serviam mais para cobrir as feridas do papo, que a consumia
aos poucos, por “aquela doença”.
- O MATO
CRESCEU AO REDOR -
Desistiu de
comer, dissaboreou. Foi até a janela e deitou fora aquela massa gosmenta,
cheirando a coentro. Estancou o olhar quando viu que os langanhos desciam
lentamente dos galhos do umbuzeiro, pensou nas suas lágrimas cozidas e espessas
de tanto ficarem guardadas no seu coração, ervado de amor, e que a algozava por
muitos anos. Nem viu que Tino, Nazaré e Chico jogavam birosca por ali. Pensou
em chamar a Euterpe para um ensaio, mas não ia conseguir muito além de um espremido
dó.
Foi até o
quarto, buscou adormecer. Pegou o relógio, viu que estava parado em 1:27h, “que
hora seria esta? ...”, “... quando
Emídio morreu?” Já ouvira casos assim,
que o relógio parara quando o dono se foi.
Tirou a
gôndola do relógio, de ouro baixo e de gosto duvidoso. Imaginou que fora
presente daquela amança?, pois a peça de
mau gosto não combinava com o fino relógio de prata da casa Gondolo Amaral, do
Rio de Janeiro. Deu corda, para ver se não estava zangado. Não estava. Deu-lhe
lustro e vida novamente.
Brincou com
os ponteiros, mas resolvera voltar aos mesmos minutos 1:27h, pois dali
começaria uma outra vida.
Pôs o relógio
ao lado do travesseiro, mas antes juntou-o,
esfregou-o ao peito dorido, levou-o à boca, quase o beijou, mas parou no
afago, pois lembrara que há
muito seu coração ficara no
outono.
Dormiu e
ajustou o tique-taque ao ritmo do seu coração. Sonhou, dormiu, sonhou menina,
na chácara dos “Bois” e das idas de trem para Bocaiúva, da espera e do encontro
na estação ou na igreja do Bonfim. De fora e de longe, ouviam-se de vozes de
crianças e vozes maduras... “Um dia veio um belo rei, belo rei....”