ÁGUA NA PENEIRA
* Aristônio Canela
As lembranças, quando querem, são grandes atrizes e nos
fazem viver uma ribalta diferente a cada apresentação. Desta maneira, o feitiço
do tempo nos impregna muito mais ao sobejar cabelos brancos. Fica, então, a
fogocidade do cérebro, um afrontador galopante, rompedor de fronteiras e
gostador de desafios, estumando músculos doídos, ossos resmungões e olhos
opacos em tortas imagens.
Mesmo diante do quadro, meu jasmineiro floriu. Aquela
cobertura de petalinhas brancas, como se fosse grinalda de noiva, contrastava
com seu verdejamento corpóreo, de uma esperança de tirar o fôlego.
Plantado por Dindinha Júlia bem ali do lado direito da minha
casa, a Rua Afonso Pena, sem calçamentos, desnudava toda minha infância. Sua
postura altaneira altaneirava mais ainda o caramanchão de madeira enfeitado por
ele. Em tardes quase todas quentes, ao feitio do sertão, vinha eu, embalado por
sonhos, assentar a seus pés, ávido de sombra e paz. Seu cheiro, invasor de mim,
estimulava minhas afoitas vontades de mudar a história do mundo.
A natureza tem seu caminhar de passos certos, sempre
dispostos a novas revelações. Trôpegos são os nossos!
Os jasmineiros, livres por vontade divina, exalam seus
aromas pelo amor profundo à mãe-terra, enquanto homens subjugam seus atos a um
certo senhor "BOM SENSO". Pecado! Que tentativa mais grosseira de
esconder limites! Ora, convenhamos! Vontades são as mesmas, ímpetos os mesmos e
o sabor das aventuras rodopia em nossas bocas, mas a verdade corta crua a carne.
Bom senso? Eufemismo! Falta mesmo, a olhos limpos, VIGOR FÍSICO.
Assim, empunhando uma bandeira de pura rebeldia, resquício
de coração tocador de tambores, arautos de guerreiros invisíveis moradores de
meu sangue, não aquieto a mim. Vou por aí, montando uma montaria mais mansa, é
bem certo, sem, entretanto, deixar o orgulho de aventureiro bater asas e me
fazer beijar os lábios da solidão.
*Membro da Academia Montesclarense de Letras