ANJO MINEIRO
Quando cheguei
na esquina, a pracinha espraiou-se sob o leque do meu olhar e os cachos de
bougainville grená espreguiçavam-se docemente. Os aromas da noite fluíam,
levados pelo sopro de um vento terno e adentravam almas e corações. A lâmpada
do poste da esquina, queimada, transbordava o tempo numa penumbra repleta de
mistérios. Misturada ao calor sertanejo, a minha terra admirava uma lua
leitosa, espalhando luz de velas trêmulas, e eu me vi envolvido nesse manto,
onde tudo podia ser ou não ser.
Encostado no
muro, a figura de chapéu de palha, camisa esverdeada, calças marrom e sandália
de três pontas, mostrava-se serenamente por inteiro.
Uma barba
rala da cor do cerne de aroeira cobria-lhe o rosto magro, salientando um par de
olhos azulados e navegadores. No canto da boca de lábios finos, um indefectível
palito rolava de um lado para o outro, como fazem os caminhoneiros após as
refeições.
Os braços cruzavam o peito e um joelho
dobrado fazia o pé jogar-se sobre o muro, enquanto o outro mantinha-se no chão.
As maças do
rosto esponteavam descarnadas e o queixo afilava mais ainda com o sobranceio de
um bigodinho tênue sobre a boca.
Um sorriso
maroto abria suas fileiras, mostrando um dente de ouro reluzente, mesmo naquele
lusco fusco.
Eu, de mãos
nos bolsos e suor descendo pela testa, assobiava uma canção ritmada e fazia
arranjos na compressão dos lábios, propondo ao ar uma passagem estreita,
espalhando um som agudo e melodioso.
Ao
aproximar-me, de olhos atentos, vi duas asas mostrarem-se num certo amarelo
desbotado e, claramente, a falta de algumas penas. Elas lhes caíam costa
abaixo, como despencando, por falta, certamente, de esmero na manutenção.
Não pude
deixar de parar para dois dedos de prosa, pois as noites desse modelo são
sempre recheadas de aventuras.
Antes
mesmo de eu mostrar-me cumprimentoso, ele quebrou seu solilóquio e me desejou
boa noite. Ao responder de coração aberto, não sei mais determinar por quanto
tempo fiquei naquele deleite, completamente inebriado por tanta bizarrice.
No
final, vindo as últimas estrelas bêbadas, chutadoras de latas irresponsáveis,
despedindo-se da madrugada, ele revelou-se: UAI! NUM VIM NÃO VIM NÃO SINHÔ! PRA
LHE MANDÁ SÊ GOUCHE NA VIDA. LÁ ISSO NÃO MESS... ATÉ PURQUÊ NUM FALO O TAL DO
FRANCÊS. NEM PUR ISSO, SEU MOÇO, NUM DÊXO DE SÊ SEU ANJO, CAIPIRA, É BEM
VERDADE, MAS UMA GAMELA CHEIA ATÉ AQUI DE TERNURA. PUR TANTO, MEU AMIGO, VAI SÊ
TRONCHO NESSE PUR AÍ E CONTE SEMPRE CUMIGO.
Eu?
Bem... Quase explodi e, absolutamente eternizado em mim, voltei a assobiar
aquela mesma cantiguinha varando o amanhecer.
* Membro da Academia Montes-clarense de Letras e da Academia
de Letras - AML, Ciências e Artes do São Francisco - ACLECIA