quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Crônica -

Capela do Rosário

 * Virgínia de Paula


A boa nova da restauração da Capela do Rosário levou-me ao passado, se é que existe realmente um passado. Tudo me parece tão presente!  No ano de 54,  eu entrei naquela capela pela primeira vez. Aquela outra capela, tão bonita, tão imponente... e que, de acordo com algumas pessoas, ficava no meio da avenida. Era noite. Meus olhos perderam-se olhando o teto, a escada, os pilares, as imagens dos santos... Já a conhecia bem pelo lado de fora. Morava na Dr. Veloso, com quintal voltado para o largo onde ela tinha sido erguida: o largo do Rosário.  Sonhava com aquele largo todas as noites, enquanto morei ali. O mesmo sonho. Melhor dizer o mesmo pesadelo. Descia a escadinha para o quintal e abria o portão. Ali na minha frente, ao lado da Capela, via uma cena de partir o coração. Escravos acorrentados, rostos contorcidos pela dor. Voltava para casa, entrava na cozinha, pegava uma faca e, como por milagre, ela servia de chave. Eu abria os cadeados, libertando um a um... até acordar. Tudo recomeçava na noite seguinte. Será que aquele largo foi algum ponto de escravos?! Será que ali ficavam esperando pelos futuros “donos”? Os sonhos deixaram de acontecer assim que me mudei para a "Chacrinha".

A mudança não foi para longe. Continuava vizinha da Capela, passando a frequentá-la mais amiúde, embora fosse comum ir à missa das crianças na Matriz, ou à missa da capela do Colégio Imaculada. Mas foram muitas as vezes que preferi a missa das 8 horas na Capela do Rosário. Padre Ciardo! Ou seria Siardo? Ou seria um nome bem diferente? Sendo estrangeiro, falava com forte sotaque. “Uma parrede não pode ser brrranca e amarrela ao mesmo tempo”, disse numa de suas práticas. Práticas que os homens nunca ouviam. Assim que tinham início, todos se levantavam para um bate papo entre eles do lado de fora. Voltavam quando a prática, hoje chamada homilia, tinha fim. Ali, muitas vezes, ensaiei os cânticos de coroação da Matriz. Claro está que seus melhores momentos aconteciam em agosto, durante as Festas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. A festa do Divino tinha lugar na Matriz. Aquele largo ficava cheio e a Capela também se enchia para as missas cantadas pelos dançantes, com  a presença da “nobreza”. A Marujada chegava na carroceria de um caminhão, simbolizando a barca. Antes da missa, em pleno largo, dançavam a Rezinga ou Morte do Patrão. E os Caboclinhos representavam a Dança do Cipó. Imaginem o que sentiram ao saber que a Capela seria demolida. Um lugar sagrado. A festa teria fim. Impossível transferir aquela celebração para outra igreja.

Foi então que meu pai teve uma ideia. Marcou hora com o prefeito para apresenta-la. “Hermes, Se estamos derrubando a Capela, porque está atrapalhando o trânsito, como você quer construir outra no mesmo lugar?!” - “Não será no mesmo lugar. Será erguida no canteiro da avenida com frente para o largo. Sem atravessar a rua. Diminuta. O importante é salvar a Festa.” O prefeito, Dr. Simeão Ribeiro Pires, também historiador, entendeu bem o projeto do meu pai e sua importância. Deu o consentimento.

Tal projeto serviria para aliviar a dor da demolição da Capela antiga. Não aliviou. A noite da despedida despedaçou nossos corações. Todos os dançantes desceram para ali dançar pela última vez. Impossível esquecer o rosto molhado de lágrimas de Zé de Custodinha dançando o Sarambé em frente ao altar. Todos choravam com ele, inclusive meu pai. Eu não suportei ficar até ao fim. Minha mente infantil não entendia aquilo. Como atrapalhando o trânsito, se havia uma rua que a contornava? Os carros sempre passaram por ali sem problemas!...
     
Dia seguinte... a  demolição. Um “assassinato” consentido... e nada podíamos fazer. Meu pai aguentou chegar até lá para salvar algumas relíquias. Trouxe para a "Chacrinha" um dos pilares e pedaços do corrimão da escada. Trouxe também uma boa notícia: o cruzeiro antigo permaneceria no mesmo lugar. Evitei por meses passar por ali. As ruínas machucavam meu coração. Voltei apenas quando teve início a construção.


A Nova Capela
      
Teve como arquiteto o Mércio Guimarães, que, seguindo orientação do Dr. Hermes, optou por algo lembrando nosso folclore. O estilo seria modernista. Era tempo de Brasília e Oscar Niemayer fazia escola... Formato inspirado na Barca da Marujada. Na parte dos fundos, do lado de fora, haveria um painel de azulejos lembrando o que existe na capela da Pampulha de Belo Horizonte. Sobre o altar haveria um letreiro em neon com a frase “Deus te Salve Casa Santa”, uma das músicas dos Catopês. Meu pai não cabia de tanto contentamento ao ver a planta da Capela pronta. Dizem que foi premiada em algum lugar da Europa. Esse contentamento deu origem a uma interpretação incorreta dos seus sentimentos, agravada quando do lançamento da nova edição do seu livro “Montes Claros, sua História, sua Gente e seus Costumes.” Num dos capítulos, ele diz ter sido a favor da demolição. Que susto! Virgílio o procurou sem entender nada. “Mas como? O senhor sempre foi contra...” Ao que parece, devido à sua amizade com o então prefeito, achou melhor parar de censurá-lo. Afinal de contas, ele havia dado o consentimento e apoio à nova Capela. Por dentro, ele sentia diferente. Nunca esquecerei suas lágrimas. O contentamento era por estar salvando a Festa, por ver a alegria dos dançantes. Eles tomaram a frente na construção, que teve o Zanza como Mestre de Obras. Será que foi a partir daí que passou a ser conhecido como Mestre Zanza?!

E assim, pelas mãos dos Catopês, Marujos e Caboclinhos, a capelinha foi erguida. Infelizmente nunca completada. O letreiro em neon, assim que se quebrou, não foi substituído. O painel nunca foi feito. Faltou acabamento. Bancos da pior qualidade. E não funcionava como a antiga. Estava sempre fechada... sendo aberta só em agosto. Logo, os vidros das portas se quebraram. Triste passar por ali e ver o piso empoeirado, lixo acumulado. Nada de missas aos domingos. Nem ensaios de coroações. Vem meu pai com nova ideia. Descobre que uma igreja pode ser usada para eventos culturais. Procura o Bispo com a proposta de consentir que ela fosse usada pela comunidade. Dom José diz sim.  As vidraças quebradas são substituídas e o piso volta a ser limpo, porque ali passa a ter exposições de artesanato, aulas de inglês (como sala do Brasil/Estados Unidos), chegando a ser sede temporária do Cine Clube de Montes Claros. A população é informada que, conseguindo um padre, poderia pedir por missas especiais. Relembro o dia 19 de junho de 1966. A Capela belíssima e florida: Bodas de Prata do casal Hermes e Josefina de Paula. No início dos anos 70, é a vez da peça teatral “Hoje é Dia de Rock”. De autoria de José Vicente, a peça marcou aquele tempo. A montagem do Rio de Janeiro no Teatro Ipanema foi considerada pela crítica como o mais importante espetáculo de 1971. “Hoje é dia de Rock” é o nome de um dos mais ouvidos programas de rádio no Brasil nos anos 50 e início dos 60 pela juventude. A peça fala sobre cinco irmãos do interior de Minas vivendo as transformações da época, sob a influência do rock ‘n’ roll. Segue o estilo da década de 60 tocando em assuntos polêmicos, sem censura. Uma turma valente de nossa terra faz sua própria montagem. A Capela se transforma em teatro de arena com arquibancadas. Casa lotada todas as noites. Porém, uma turma de poder não aceita “aquilo” dentro de uma capela. Com boa vontade, ainda podemos ouvir os protestos. Dizem que até jogaram praga contra os atores. Dois deles sofreram grave acidente, deixando-os em coma por alguns meses. Assim, dramaticamente, encerram-se as atividades culturais na Capela do Rosário, que passa então a ser sala para velórios por anos a fio.
              
Dezembro de 2009. Encerramento da Celebração do Centenário de Hermes de Paula, com missa na capelinha, ao som de Folia de Reis. Minha mãe se emociona lembrando a todos da dedicação do homenageado ao folclore e à Capela. Que alegria ver suas portas abertas para algo tão bonito! Por que não sempre assim?  É então que começo a tomar conhecimento das boas novas. Em breve haveria missas dominicais. Também seria lembrada por ocasião da Semana Santa. Hoje vemos que as boas novas eram verdadeiras. E como uma coisa puxa a outra, perceberam a necessidade da restauração. O jovem e entusiasmado Padre Fernando, ao saber que nunca foi completada, entende que é hora de assim o fazer, seguindo o projeto original. Ao tomar conhecimento de sua importância histórica e folclórica, reconhece que a restauração não deve ser apenas para que os fiéis tenham mais conforto. Deve visar principalmente seu compromisso com os dançantes e nossa mais bela festa: as Festas de Agosto. Alguém lá em cima está muito feliz!...


* Memorialista, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros - IHGMC

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