por Aristônio Canela*
O Guzerá é
um animal vistoso, de grande porte e suas origens confundem-se com um passado
remoto de imagens em cerâmicas, achados arqueológicos em Mohenjo-Bapo e
Harappa, na Índia e Paquistão.
No Brasil
a raça foi introduzida em 1870, advinda do Oriente, trazida pelo Barão de Duas
Barras e por ser muito forte foi utilizado não só para carne e leite, mas
também para tração puxando carroções e até mesmo vagões no transporte do café.
Com o
passar do tempo e concorrência de outras raças, entrou em decadência voltando a
ter novo impulso na década de sessenta, nos vários cruzamentos, inclusive com o
Nelore, originando o Guzonél.
No Norte
de Minas, onde a seca não sabe o que é compaixão, a raça por sua rusticidade, mostrou-se
valente na adaptação do solo e clima criando esperança nos criadores,
entusiasmados nas exposições agropecuárias promovendo valores principalmente de
carne e leite.
No Vale do
São Lamberto não foi diferente e o Tenente reformado da Polícia Militar,
Afrânio Bertioga de Oliveira, ao se casar com Gerarcina Gusmão de Carvalho,
filha única do velho Faustino Otoni de Carvalho, dono da fazenda “Lírio
Branco”, com cem alqueires bem cuidados, pastagem amplas, nas terras mais altas
prevalecendo o Brachiária, nas baixas Colonião e Bengo, tinha ainda cinco
hectares de cana, sorgo e milho para o silo de várias toneladas e acabou
herdando tudo quando do passamento do sogro já enviuvado.
A perda
foi um trauma grande para a região e ninguém apostava na manutenção da
exuberância de “Lírio Branco” na ausência de seu benfeitor.
A realidade mostrou o quanto estávamos enganados! A fazenda
multiplicou seus investimentos nas mãos do Tenente, trazendo modernidades nas
máquinas agrícolas assim como na criação do Guzerá, até então desconhecida para
os ribeirinhos, firmando-se como atividade principal e crescendo o entusiasmo
ano a ano pela qualidade das matrizes gerando lucro acima do esperado.
Nesse
aspecto, Afrânio Bertioga vivia um sorriso só, navegando em águas calmas de
felicidade, mostrando ao mundo segurança da mais pura.
O
contraste evidenciava-se nas mesas preferidas dos botecos de Zezim de Dona Fia
e Belarmino Bico Doce quando, invariavelmente as terças e quintas eram por ele
ocupadas, respectivamente, destilando seu imenso desconforto na vida conjugal.
Numa
semana atípica, não compareceu “nem num nem noutro” boteco e convidou-me, à
língua minúscula, para um passeio na Dona Xandoca, aonde a dançarina Gabriela
Furtado, vinha em “turnê” de Porto Seguro na Bahia, a “Biezinha”, para fazer
sua primeira apresentação em terras Mineiras, prometendo deixar os marmanjos de
água na boca, em cíclicas contorções já cogitadas, segundo seu empresário, pelo
Circo de Soleil, tamanha originalidade e sensualidade. Aceitei o convite e de
pronto pus-me todo “Pimpão” e quando cheguei, Marcão Guarda Roupa, o segurança,
levou-me à mesa com a casa completamente lotada.
O salão
veio abaixo na apresentação de “Biezinha” exuberando sua “moreniçe” Cabo-Verde,
num corpo escultural fazendo inveja a qualquer cobra em areia quente,
abrindo-se toda em corolas, deixando olhares atônitos freqüentarem intimidades,
alvoroçando desejos incontroláveis.
Foi muito
difícil para equipe de segurança manter as regras da casa e alguns mais afoitos
açulados pelos eflúvios etílicos foram obrigados a deixarem o recinto,
principalmente quando a dançarina fez de seu camarote uma espécie de sala de
visitas somente para afortunados de gordos bolsos.
Serenados os ânimos, a música, sob o comando de Newton
Borborema e a voz adocicada de Edson Luiz foi nos invadindo e na mesma
proporção dos pares rodopiando, nossas cabeças entregavam-se ao velho líquido,
um emérito destravador de línguas e o
meu companheiro, abriu seu coração num desabafo de abalar montanhas, falando-me
de sua desdita.
Viver com Dona Gerarcina não lhe pareceu, a princípio, um
obstáculo intransponível, mesmo considerando a absoluta falta de atributos
físicos, com seus cabelos ralos, estrabismo do olho direito, queixo pontudo,
boca pequena de lábios finos e buço enegrecido, pescoço longo, tórax estreito
de seios em dois pequenos botões, braços arqueados, mãos de dedos curtos,
cintura quadrada de glúteos em tábua, coxas e pernas de taliscas além de voz
esganiçada perfuradora de ouvidos.
Em
verdade, nada disso foi páreo para seu “OLHO GRANDE” nas terras de “Lírio
Branco” e assumiu todos os riscos no altar, ao dizer sim.
O tempo,
entretanto, agora lhe mostrava quão alto foi o preço pago. A mulher de gênio de
cão, de ciúme doentio, de cio eterno, não lhe dava sossego quanto às obrigações
matrimoniais e nem mesmo os medicamentos mais modernos lhe faziam cumpri-las.
As
lamúrias vazaram a madrugada e o assunto só foi quebrado por uma vez, quando
demonstrei interesse em criar Guzerá, recomendado enfaticamente por ele.
Sete meses
depois daquela farra, fomos todos surpreendidos com a morte súbita do Tenente
Afrânio Bertioga de Oliveira, ainda sem chegar aos cinqüenta, cuja causa para
as falas freqüentadoras das vielas lambertenses foi claramente falência do
coração pelo intenso e cotidiano esforço físico exigido pela alcova de Dona
Gerarcina.
Enlutados
ficamos por muito tempo lamentando a viagem sem volta do amigo, companheiro
leal e agregador partido assim tão cheio de arrependimentos, deixando “Lirio
Branco” e suas riquezas aos comandos agora, da viúva.
Domingo
passado, no encerramento da missa, Padre Mariano fez questão de lembrar a
trajetória do Tenente Afrânio, derramando-se em elogios recebidos com alegria
por nós.
Na saída
da Igreja tive oportunidade de cumprimentar Dona Gerarcina e dizer-lhe do meu
apreço pelo falecido, assim como de minha admiração pelo Guzerá e vontade de
iniciar a raça, na “Fazenda LANA”, sentindo minhas terras preparadas para esse
empreite.
Notei um
exagero de caras e bocas da viúva e no seu convite “gentilérrimo” para um
passeio em sua casa, quando conheceria “Leonidas do Lírio Branco”, seu touro
premiadíssimo, doador de sêmen valioso.
No dia marcado, Wagner e eu lá estávamos e fomos recebidos
com alvíssaras portentosas, um café da manhã magnífico e todo tipo de mimo a
minha pessoa, a ponto de despertar o comentário de meu acompanhante:
“É... É... É doutor! Essa muié tá arrastano a asa pru
sinhô.”
Fato percebido, procurei ser o mais natural possível ao
relevar seus elogios com suas mãos apertando meus ombros, seus olhares
dengosos, seus suspiros prolongados e quando senti um toque acintoso de seus
pés nas minhas pernas por debaixo da mesa, achei ser chegada a hora de bater-me
em retirada estratégica, para sua tristeza, sem antes ter sido obrigado a
marcar novo encontro para um jantar, dessa feita, a dois.
Com os ouvidos
ainda cheios das histórias do Tenente Afrânio, depois de duas tulipas de chopp,
de colarinhos brancos e encorpados, servidas pelo meu amigo Jonas no seu bar em
Montes Claros, naquela quarta-feira calorenta; desisti de criar Guzerá,
lembrando-me do latinês caipira do filósofo Tiófo Quiroga:
“NANUM SEMPRARI, PER SANCTUS, BEIJINARIS PETRAS.”
O que traduzido seria:
“NEM SEMPRE PELOS SANTOS, BEIJAM-SE AS PEDRAS.”
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LAMPEJO
por Aristônio Canela*
Estávamos, a natureza e eu, assuntando a vida por debaixo da
soberania do grande arco-íris, novinho novinho, ainda cheirando à terra
molhada, festeiro do sertão, na varanda lá de casa, quando em notas musicais e
vôo acrobático, acomodou-se o canarinho elegantemente no galho do jasmineiro
coposo, todo enfeitado de “petalinhas” brancas e cheiro embriagador, numa cena
de Felini, deixando-nos absolutamente felizes.
Depois, num piscar de olhos humanos; nove meses foram
passados!
O jasmineiro bateu asas e...
O passarinho criou
raízes!