OLÍVIO
por Aristônio Canela*
O Columba
Lívia, também chamado de “pombo doméstico”, é uma ave da ordem Columbiforme, da
família Columbidae, originária da Eurásia e África, obtém, em nossos tempos,
uma alta taxa de distribuição pelo mundo, por sua capacidade adaptativa e
reprodutiva, além da facilidade na alimentação.
Muito comum no Brasil, trazido pelos colonizadores
portugueses, assumiu um aspecto urbano, vivendo em praças públicas, comendo
restos de comida humana e fazendo de três a seis posturas, quase sempre em dois
ovos, tendo suas crias normalmente vingadas, podendo chegar a doze filhotes
anuais. Essa explosiva reprodução faz crescer assustadoramente a população,
tornando-os verdadeiras pragas, causando diversos problemas, nidificando em
telhados, podendo transmitir doenças por fungos patogênicos, ectoparasitas, os
chamados piolhos, com pruridos na pele e, ainda, patologias graves como a febre
tifo.
Mede aproximadamente entre 28 e 38 centímetros e pesa de 238
e 330 gramas, podendo viver até dezesseis anos.
Nada disso, porém, interfere na beleza de suas revoadas e no
carinho dos homens.
Os
noticiários de rádio, jornais e televisão alertam todos os dias para o perigo
do tempo seco e da baixa umidade relativa do ar, chegando a níveis críticos,
com todo seu séquito, agredindo o sistema respiratório, principalmente de
velhos e crianças, distribuindo o vírus da gripe e suas consequências.
Os agasalhos são tirados dos baús e o cheiro da naftalina
impregna o ar, num aviso de inverno e os músculos norte-mineiros põem-se em
indolências, esquecendo os exercícios e os adipócitos que inundam as barrigas
vorazmente, aumentando furos do cinto.
Amoquecados, ficamos todos em casa de pantufas, ouvindo o
ventinho frio soprar na companhia de um capuchino. Foi exatamente esse o quadro
vivido por mim, bem depois da meia noite daquela sexta, quando, pela enésima
vez assistia à Casa Blanca com a mesma emoção da primeira, admirando Humphey
Bogart e Ingrid Bergnan ao som de “As Time Goes By”.
De repente, pelo
janelão entreaberto, meus assuntamentos desviaram-se da tela para um barulho
claro de ruflar de asas, vindos do pé de Canela, todo empetecado de sementes no
meu jardim. Pus reparo e não tive dúvidas.
Curioso,
resolvi verificar; acendi a luz e descobri a causa. Tratava-se de um pombo de
cor cinza claro, mancha púrpura e outra esverdeada na lateral do pescoço, bico
cinzento, pés avermelhados, olhar espantado de olhos alaranjados, com pupilas
negras, movimentando a cabeça para frente e para trás e, numa demonstração de
nervosismo, andava em círculos, sem perder a solenidade e elegância.
Abordei-o
educadamente e ele me respondeu com segurança e sobriedade.
Nossa
conversa foi marcada por uma grande empatia e, logo após apresentar-se como
Olívio, soube do seu comprometimento de saúde, causa daquele transtorno,
devidamente compreendido na solicitação e aceitação de asilo provisório.
Ofereci o
interior da casa, recusado por ele, mesmo sendo alertado para a presença
notívaga de “Carniceiro”, um gato branco, predador incansável.
Nos agradecimentos, se mostrou conhecedor de defesas
perfeitas contra tais ataques e, me pedindo licença, acomodou-se
confortavelmente, empoleirando-se numa pequena escada de madeira por debaixo da
janela.
Pela manhã,
encontrei-o na garagem com olheiras marcantes, sinal de uma noite mal dormida,
queixando-se de dores abdominais e rastros claros de uma diarreia marcada por
sangue vivo.
Quis saber mais sobre o caso, mas foi econômico nas
respostas e, quando tentei um exame físico apurado, sentiu-se extremamente
constrangido e me impediu com veemência.
Meus argumentos foram miúdos diante de sua decisão firme,
mas aceitou um tratamento clínico. Iniciei com água fresca filtrada, arroz
cozido sem sal ou gordura, chá de casca de Pau-Terra, potente anti-diarreico
muito usado em mim, por mamãe; dose adequada de Fitalomicina, dez gotas de
Trometamol Cetorolaco, analgésico e antiinflamatório, além de Sulfadiazina com
Trimetropina.
O tratamento, ao completar setenta e duas horas, mostrou
efeito generosamente positivo e surpreendente, a ponto do paciente iniciar
exercícios fisioterápicos no bater de asas, saltitando e recuperando o bom
humor, permanecendo irredutível, entretanto, quanto ao exame clínico detalhado
com ausculta e palpações proposto.
Confesso
minha imensa estranheza nessa atitude, mas, lembrando meu mestre Luigi
Bogliolo...: “PRIMO NON NOCERE”, primeiro não incomode, relevei.
Os dias foram
passando e nossas conversas tornaram-se cada vez mais frequentes, propondo a
nós descobertas valiosíssimas em inúmeros pontos de convergências filosóficas
e, quando me atinei, de alma nua, num solilóquio mais íntimo possível, tive
certeza de um sentimento profundo e dependente, deixando-me apavorado perante
minha macheza.
O que diria papai sobre esse amor incontrolável?...
Sentindo-me
envergonhado, tentei esquecer as dores do meu coração naquela angústia
solitária, evitando novos encontros. Essas forças, porém, são absurdamente
poderosas e acabávamos juntos nos finais de tarde, com ele demonstrando
segurança perfeita nos argumentos sólidos, conhecimento de vida e compreensão
completa da universalidade do amor, independentemente de sermos homem e pombo.
O impacto
disso tudo promovia em mim uma luta surda e inglória, num viés de absoluto e
completo desentendimento do que se passava comigo, vendo-me cada vez mais
instável pelas noites insones, completamente perdido no furacão daquele
sentimento desvairado, sem conseguir aceitá-lo, mas dominado por sua força
estranha.
Minha alma
viril, forjada no sol do sertão, acostumada às tradições de macho alfa,
garanhão por assim tão natural, não podia jamais aceitar esse travo amargoso
arroxeando meus sentidos, mas o racional picava-me dolorosamente a me mostrar o
tamanho do meu envolvimento e, certa tarde, revelei-lhe minha dor.
Não se fez
surpreso e, em poucas palavras, bem medidas, deixou-me claro o tamanho
incompreendido das energias cósmicas.
Dois dias
depois, não sei se por via direta da minha confissão, seus sinais e sintomas
voltaram, fazendo-me numa péssima expectativa.
Daí para frente foi definhando, sem responder a qualquer
tratamento e, nessa manhã, ao procurá-lo para nosso desjejum, encontrei-o
estendido na soleira da porta da cozinha. Meu coração disparado encontrou a
solidez do médico e constatei o óbito.
Os mistérios,
às vezes, são resolvidos pelas vontades, sem avexamentos, da mãe natureza!
Na junção da sua asa esquerda com o tórax, vi pender uma
modelada bolsa de coro que abri com cuidado. Dentro, muito bem acomodados,
rímel, batom, rouge, perfume e, confirmando o universo feminino, um minúsculo
fardo de absorventes.
A eternidade
de João Guimarães Rosa me envolveu no seu manto cosido pelas agulhas e linhas
de um extraordinário mundo de fascínios, provavelmente imponderáveis e um
Riobaldo de olhos marejados e entardecidos, explodiu-se em mim, naquele
encontro libertador com o seu Diadorim.