sexta-feira, 12 de julho de 2019

- Crônica -


OLÍVIO
por Aristônio Canela*

O Columba Lívia, também chamado de “pombo doméstico”, é uma ave da ordem Columbiforme, da família Columbidae, originária da Eurásia e África, obtém, em nossos tempos, uma alta taxa de distribuição pelo mundo, por sua capacidade adaptativa e reprodutiva, além da facilidade na alimentação.

Muito comum no Brasil, trazido pelos colonizadores portugueses, assumiu um aspecto urbano, vivendo em praças públicas, comendo restos de comida humana e fazendo de três a seis posturas, quase sempre em dois ovos, tendo suas crias normalmente vingadas, podendo chegar a doze filhotes anuais. Essa explosiva reprodução faz crescer assustadoramente a população, tornando-os verdadeiras pragas, causando diversos problemas, nidificando em telhados, podendo transmitir doenças por fungos patogênicos, ectoparasitas, os chamados piolhos, com pruridos na pele e, ainda, patologias graves como a febre tifo.

Mede aproximadamente entre 28 e 38 centímetros e pesa de 238 e 330 gramas, podendo viver até dezesseis anos.

Nada disso, porém, interfere na beleza de suas revoadas e no carinho dos homens.

Os noticiários de rádio, jornais e televisão alertam todos os dias para o perigo do tempo seco e da baixa umidade relativa do ar, chegando a níveis críticos, com todo seu séquito, agredindo o sistema respiratório, principalmente de velhos e crianças, distribuindo o vírus da gripe e suas consequências.

Os agasalhos são tirados dos baús e o cheiro da naftalina impregna o ar, num aviso de inverno e os músculos norte-mineiros põem-se em indolências, esquecendo os exercícios e os adipócitos que inundam as barrigas vorazmente, aumentando furos do cinto.

Amoquecados, ficamos todos em casa de pantufas, ouvindo o ventinho frio soprar na companhia de um capuchino. Foi exatamente esse o quadro vivido por mim, bem depois da meia noite daquela sexta, quando, pela enésima vez assistia à Casa Blanca com a mesma emoção da primeira, admirando Humphey Bogart e Ingrid Bergnan ao som de “As Time Goes By”.

De repente, pelo janelão entreaberto, meus assuntamentos desviaram-se da tela para um barulho claro de ruflar de asas, vindos do pé de Canela, todo empetecado de sementes no meu jardim. Pus reparo e não tive dúvidas.

Curioso, resolvi verificar; acendi a luz e descobri a causa. Tratava-se de um pombo de cor cinza claro, mancha púrpura e outra esverdeada na lateral do pescoço, bico cinzento, pés avermelhados, olhar espantado de olhos alaranjados, com pupilas negras, movimentando a cabeça para frente e para trás e, numa demonstração de nervosismo, andava em círculos, sem perder a solenidade e elegância.

Abordei-o educadamente e ele me respondeu com segurança e sobriedade.

Nossa conversa foi marcada por uma grande empatia e, logo após apresentar-se como Olívio, soube do seu comprometimento de saúde, causa daquele transtorno, devidamente compreendido na solicitação e aceitação de asilo provisório.

Ofereci o interior da casa, recusado por ele, mesmo sendo alertado para a presença notívaga de “Carniceiro”, um gato branco, predador incansável.

Nos agradecimentos, se mostrou conhecedor de defesas perfeitas contra tais ataques e, me pedindo licença, acomodou-se confortavelmente, empoleirando-se numa pequena escada de madeira por debaixo da janela.

Pela manhã, encontrei-o na garagem com olheiras marcantes, sinal de uma noite mal dormida, queixando-se de dores abdominais e rastros claros de uma diarreia marcada por sangue vivo.

Quis saber mais sobre o caso, mas foi econômico nas respostas e, quando tentei um exame físico apurado, sentiu-se extremamente constrangido e me impediu com veemência.

Meus argumentos foram miúdos diante de sua decisão firme, mas aceitou um tratamento clínico. Iniciei com água fresca filtrada, arroz cozido sem sal ou gordura, chá de casca de Pau-Terra, potente anti-diarreico muito usado em mim, por mamãe; dose adequada de Fitalomicina, dez gotas de Trometamol Cetorolaco, analgésico e antiinflamatório, além de Sulfadiazina com Trimetropina.

O tratamento, ao completar setenta e duas horas, mostrou efeito generosamente positivo e surpreendente, a ponto do paciente iniciar exercícios fisioterápicos no bater de asas, saltitando e recuperando o bom humor, permanecendo irredutível, entretanto, quanto ao exame clínico detalhado com ausculta e palpações proposto.

Confesso minha imensa estranheza nessa atitude, mas, lembrando meu mestre Luigi Bogliolo...: “PRIMO NON NOCERE”, primeiro não incomode, relevei.

Os dias foram passando e nossas conversas tornaram-se cada vez mais frequentes, propondo a nós descobertas valiosíssimas em inúmeros pontos de convergências filosóficas e, quando me atinei, de alma nua, num solilóquio mais íntimo possível, tive certeza de um sentimento profundo e dependente, deixando-me apavorado perante minha macheza.

O que diria papai sobre esse amor incontrolável?...

Sentindo-me envergonhado, tentei esquecer as dores do meu coração naquela angústia solitária, evitando novos encontros. Essas forças, porém, são absurdamente poderosas e acabávamos juntos nos finais de tarde, com ele demonstrando segurança perfeita nos argumentos sólidos, conhecimento de vida e compreensão completa da universalidade do amor, independentemente de sermos homem e pombo.

O impacto disso tudo promovia em mim uma luta surda e inglória, num viés de absoluto e completo desentendimento do que se passava comigo, vendo-me cada vez mais instável pelas noites insones, completamente perdido no furacão daquele sentimento desvairado, sem conseguir aceitá-lo, mas dominado por sua força estranha.

Minha alma viril, forjada no sol do sertão, acostumada às tradições de macho alfa, garanhão por assim tão natural, não podia jamais aceitar esse travo amargoso arroxeando meus sentidos, mas o racional picava-me dolorosamente a me mostrar o tamanho do meu envolvimento e, certa tarde, revelei-lhe minha dor.

Não se fez surpreso e, em poucas palavras, bem medidas, deixou-me claro o tamanho incompreendido das energias cósmicas.

Dois dias depois, não sei se por via direta da minha confissão, seus sinais e sintomas voltaram, fazendo-me numa péssima expectativa.

Daí para frente foi definhando, sem responder a qualquer tratamento e, nessa manhã, ao procurá-lo para nosso desjejum, encontrei-o estendido na soleira da porta da cozinha. Meu coração disparado encontrou a solidez do médico e constatei o óbito.

Os mistérios, às vezes, são resolvidos pelas vontades, sem avexamentos, da mãe natureza!

Na junção da sua asa esquerda com o tórax, vi pender uma modelada bolsa de coro que abri com cuidado. Dentro, muito bem acomodados, rímel, batom, rouge, perfume e, confirmando o universo feminino, um minúsculo fardo de absorventes. 

A eternidade de João Guimarães Rosa me envolveu no seu manto cosido pelas agulhas e linhas de um extraordinário mundo de fascínios, provavelmente imponderáveis e um Riobaldo de olhos marejados e entardecidos, explodiu-se em mim, naquele encontro libertador com o seu Diadorim.

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