por Aristônio
Canela*
As festas juninas brasileiras são o
reflexo de várias culturas, sem perder a brasilidade de um país continental,
falando várias línguas do norte ao sul, em que pese ter origem em muito
conhecidos Santos de Portugal: Santo Antônio, São João e São Pedro, bem
adaptados às nossas terras e merecedores de honras e vivas elevadas por seus
milagres.
Tradicionalmente, iniciam-se em doze
de junho, véspera de Santo Antônio; vinte e quatro, São João e vinte e nove,
São Pedro.
As comemorações vieram nas embarcações
portuguesas, no Período Colonial e sofreram modificações variadas pelas
influências africanas e indígenas, criando características próprias em cada
canto do país, não abalando jamais o grande pilar da fé, tendo, no crepitar das
fogueiras, o calor e o lúmen, armas eficazes contra os maus espíritos,
mostrando que o forte teor cristão se adaptou às idéias pagãs, numa atitude
inteligente da Igreja, alertada pela incontrolável popularidade dos festejos,
quando o povo sempre pede farturas nas colheitas, numa tradição enraizada em
cada coração transbordante de esperanças nas missas, novenas e procissões,
substanciando os alicerces católicos.
O lado lúdico vem nas brincadeiras do
pau de sebo, no salta-fogueira, para efetivar os compadres, corrida de
argolinhas, correio elegante, pescaria de prendas, música caipira animando as
quadrilhas ou coleções, simpatia no comer do “pãozinho de Santo Antônio pelas
moças casadoiras esperançando a saída do “caritó”, nicho na casa dos sertanejos
pela donzela de aspectos eternos da solteirice.
Na mesa farta, encontra-se assados,
guisados, caldos, paçoca de carne de sol com pimenta malagueta, quentão,
cachaça da boa, pé de moleque, farofa, pipoca, canjica, cocada e outras tantas
guloseimas.
As barraquinhas são decoradas com
bandeirolas de várias cores, estampas do Santo homenageado, flores
características da região e um destacado retrato do casal de festeiros.
Padre Mariano, dessa vez, queria
superar qualquer outra manifestação de igual teor constituída pelas fazendas
dos Coronéis, para demonstrar a supremacia da sua Igreja. Portanto, além do
empenho de Dona Osmarina no comando do setor de quitutes, Dona Ediclene na
divulgação, Dona Eufrosina com a tesoura na mão, muito eficaz e Dona Alfredina
na decoração, tinha ainda seu Tenório Carne Seca, de andar apressado, olhos
miúdos, bigodinho ralo, óculos de tartaruga na ponta do nariz avermelhado e
adunco, cabelos oleosos jogados de lado, fala de palavras seguras e
convincentes, como o grande captador de recursos com o direito decretado pelo
pároco, de abençoar a todos os colaboradores, uns mais, outros menos, é claro,
nas dependências do tamanho das doações, mas tudo revertido em favor da
paróquia, nos seus três dias de leilão, culminando com a santa missa no
domingo, celebrada, naquele ano, pelo Monsenhor Fratésio Galhardo, convidado
querido, diretor geral do Seminário de Diamantina, coadjuvada pelo próprio
Padre Mariano e ajudada, com toda pompa das novas vestimentas, por Carlim Tico
Tico no turíbulo e companhias, sacristão de longa data, reconhecido por sua
plena dedicação.
Os festeiros do ano eram Seu
Florentino Calixto de Junqueira e Dona Maria Clara Silva de Junqueira, donos da
fazenda “Baixa das Flores”, cujo carro chefe era a suinocultura, abastecendo
vários supermercados de Montes Claros e preparando-se para romper os limites da
cidade.
O filho, João Miguel, que servia o
exército com a patente de Capitão, muito respeitado pelos seus pares, morador
de Juazeiro na Bahia, um admirador das carrancas e do Velho Chico, teve
confirmada sua presença e, certamente, participaria, com sua farda de gala, do
cortejo saído da sede da fazenda.
A filha, Lindinéia Helena, a lindinha,
no auge de seus trinta balzaquianos, xodó da família, formada em Zootecnia,
responsável pela gestão, criação e aproveitamento dos produtos animais, era uma
mulher de forte personalidade, além de bonita, inteligente e de extrema
competência, focada unicamente no seu trabalho, alienando-se dos gostos
mundanos, tirando de mim suspiros profundos ao ver aquela bocona sensual
entregar-se apenas a sorrisos, não dando chances aos beijos meus, apesar de
viver um clima favorável e incentivador das minhas expectativas.
A moça, vestida a caráter,
seria sem dúvida a princesa mais desejada de todos os homens, enfeitando o
Império de Seu Florentino e Dona Maria Clara.
No sábado, às nove da noite em ponto,
o sino repicou, os fogos de artifício povoaram o céu em espocares coloridos por
um quarto de hora, na riquíssima chegada do séquito, numa pompa jamais vista
por aquelas bandas, trazendo uma grande novidade: uma enorme bandeira com a
figura dos três santos, demonstrando a abrangência da fé, logo hasteada no centro
da pracinha, para alegria de todos.
Girumim da Sanfona, Medim do Pandeiro,
Lixandro da Zabumba, Cornélio do Triângulo e Otacílio no gogó, puxaram,
afinadíssimos, “com a filha de João Antônio ia se casar, mas Pedro fugiu com a
noiva, na hora de ir pro altar”... “O pau quebrou e quebrou gostoso”, com os
casais “grudadim grudadim” em rodopios pelo “encimentado” na frente da Igreja,
numa solta alegria.
Sentado confortavelmente num cantinho
estratégico da barraca de Dona Isaltina Pinta-Roxa, degustando um licor de
jenipapo e anéis de linguiça caseira, “garrado” numa prosa com Lilico Mimoso,
no seu casaco rosa clarinho, gola alta, estampado de florinhas azuis, brilho
nos lábios de botox, brinquinhos de pérola, unhas longas de esmalte escalarte,
gestos felínicos, languidez na voz, lamentava o falecimento prematuro de Toizim
Passo Preto, um guarda roupas crioulo, de um metro e oitenta, participante de
folguedos inesquecíveis de seus lençóis, acontecido há três dias em Montes
Claros, vítima de um rompimento de aneurisma cerebral...
Só percebi o correio elegante me
trazendo um bilhetinho, nos seus últimos passos. Surpreso, desdobrei o
papelzinho vermelho, cor das ardências amorosas e li ansioso: “Quando eu
passar, discretamente é só me seguir. A porta da casa de Dona Frozina, aonde
vou trocar de roupa, estará aberta. Teremos pouco tempo, mas poderá ser uma
eternidade. Beijos, Lindinha”.
Instantes depois, num rabo de
olho brejeiro, deixou seu perfume no ar flutuando no meu nariz, fazendo-me o cão
farejador mais feliz do mundo.
Foram momentos intensos de uma paixão
necessitada de plena liberdade entre bocas, línguas, mãos e almas famintas, só
plenamente saciada quando o mundo nos pareceu uma fagulha cruzando o infinito
do universo e criando um afrouxamento de nossos corpos.
Depois, esgueiramos por entre
muros e nos vimos exultantes novamente na pracinha, guardando nosso segredo,
compartilhado apenas num leve sorriso matreiro de lábios ainda no gosto de
nossos céus.
Não demorei mais e pus a caminhonete
na estrada, numa terceira marcha, até as placas da entrada principal. Lá, num
xixi arrepiante, após abrir a porteira, o som dos cascos de uma montaria
aproximou-se rapidamente para personificar-se logo atrás de mim.
Meu coração largou do peito,
pulou no chão e escondeu-se por entre os troncos dos eucaliptos, batendo queixo
feito uma matraca.
Minhas vistas fizeram-se em
certezas e a paixão de Lilico por inteiro se mostrou. De voz fraquinha,
comentei: “MOÇO, OCÊ NUM TÁ MORTO?”
Uma gaitada varou minha madrugada e a
voz clara respondeu: “UAI DOTÔ, O SINHÔ ASSIM TÁ MI DISMINUINO! QUEM MORREU FOI
TOINZIM. EU SÔ TONHÃO PASSO PRETO, PRIMO DÊLL.”
O tempo parou para eu me recuperar do
desfalecimento e trazer meu coração mofino de volta, ainda batendo num
acelerado, ocupando seu verdadeiro lugar nesse meu peito alquebrado de sessenta
e seis, ainda “doidim doidim” por novas aventuras.