FAZENDA CANTINHO
*Juvenal
Caldeira Durães
No início da década de trinta, meu
pai dispôs de sua padaria em Montes Claros e comprou uma propriedade rural de
nome Cantinho, com uma distância aproximada de dez quilômetros de nossa cidade,
para onde fui, ainda nos braços de minha mãe, viver até os dez anos de idade, naquele
lugar sagrado, cercado pelos meus familiares, agregados e vizinhos, que ainda
conservo na minha memória.
Ali, até o céu era nosso. Terras
férteis, lavouras com safras abundantes, moagem de cana, fabrico de farinha e
de laticínio caseiro, criação de galinhas, engordas de animais suínos e
bovinos. Foi um tempo feliz, de paz e de alegria, de movimentação e de fartura
para nós, agregados e vizinhos.
Minha mãe era do lar e de pouca
instrução, porém, de grande experiência e sabedoria. Aprendi muito com seus
conselhos e estórias interessantes, de fundo educativo e filosófico. Meus irmãos eram unidos e davam-me apoio e
atenção. Meu pai era convivente, calmo por natureza, versátil e gostava de
novidades. Fazia as construções da fazenda com ajuda de nossos empregados.
Construiu a igrejinha de Santo Antônio para nossa devoção, onde reuníamos à
tarde do último domingo de cada mês para louvar o nosso padroeiro.
Era uma época favorável à pecuária
e à agricultura, com mão de obra fácil e chuvas de verão constantes e
abundantes. Quando o veranico de janeiro era inclemente e prolongado, minha mãe
reunia os agregados e vizinhos para a famosa penitência de nove dias, que partia
ao meio dia com o sol a pino, de nossa casa até a igrejinha de Santo Antônio.
Todos em fila dupla, rezando, com pedra na cabeça, um ramo verde numa mão e uma
garrafa d’água na outra, para depositar ao pé do cruzeiro em frente à capela.
Geralmente, o santo padroeiro nos escutava e mandava chuvas antes de terminar a
novena, para a nossa alegria e perpetuação da fé.
Além das mulheres e filhas dos
agregados, tínhamos Altina, mulher solteira, robusta e disposta que morava
conosco e fazia os trabalhos domésticos mais simples. Lembro-me dos carreiros
que passaram por lá: Juca, Antônio Contendas e Geraldo Farias que cuidavam da
traia carreira transportando lenhas para a cidade com os bois. Mathias era
nosso empregado de confiança que zelava pelos nossos bens e impunha respeito na
vizinhança. Era famoso pelas mortes que cometera e sempre dizia que estava às
ordens de meu pai para qualquer coisa, contudo, nunca foi acionado por nós. Meu
pai era pacífico por natureza e nunca cometeu qualquer ato de violência.
Nossa família era convivente e
estimada na região. Dos nove filhos, eu era o quinto: Antônia (Sinhá),
Waldomiro, Aristeu e Alíria mais velhos. Adélia, Maurício, Violeta e Marina,
mais novos. Hoje, Eu, Adélia, Maurício e Marina são os que ainda restam daquele
mundo glorioso de outrora que o vento levou. Nada permanece para sempre, tudo é
passageiro, a vida imprevisível e efêmera.
Foto,
com palavras saudosas de minha mãe.
Igreja na Fazenda Cantinho, em homenagem a Santo Antônio, feita pelo meu
pai Arthur Caldeira de Souza, na década de 30. Nela podemos ver, numa reunião
de um terço de último domingo do mês: Meu pai ao lado do oratório do padroeiro,
eu aos 7 anos de idade de boné na mão e ao lado de minha irmã Adélia e de meus irmãos Maurício e Aristeu. Do
Lado esquerdo, podemos ver: minha mãe Maria Durães com minhas irmãs Violeta, no
colo; Alíria, de branco; Sinhá, ao lado de tia Judith e suas enteadas; agregados
e vizinhos presentes e também, o nosso cachorrinho Zip.
Os meus padrinhos D. Maricota Durães
e seu filho Geraldo Caldeira Brant, nossos parentes, eram reservados e
afastados. A negra Felícia, nossa
serviçal e minha “madrinha de carrego”, que me manteve nos seus braços durante
a cerimônia do batizado, dava-me todo carinho e proteção. Eu a chama de
madrinha e ela me chamava de meu filho. Como as pessoas simples são bondosas! O
ar de riquezas separa as pessoas, geralmente, por ilusões e ignorância. Estamos
no mesmo barco e a vida não merece tanta atenção.
No meio do ano, festejávamos
o nosso padroeiro, com fogueira, rezas na igreja, farta mesadas de café com
biscoitos, bolos e o famoso jantar da meia noite, do dia doze de junho de cada
ano. Ali reuniam a vizinhança, nossos parentes de Montes Claros e de Juramento,
que vinham passar todos os anos, aquelas noites alegres, saudosas e
inesquecíveis, juntamente conosco. A sanfona de cento e vinte baixos, do
sanfoneiro Exupério, zoava a noite inteira para a satisfação dos incansáveis
dançantes. Até eu, “puxava” uma acanhada garotinha encostada na parede, e saia
dançando no meio da rapaziada que rodopiava no salão com suas belas garotas.
Dias depois, íamos para nossa
casa da cidade situada no bairro Roxo-verde para participarmos dos festejos
folclóricos de agosto com seus dançantes vestidos de branco, com capacetes
enfeitados de fitas coloridas e espelhinhos redondos, cantos tristes em louvor
ao Santo Benedito, acompanhados de violas, caixas e pandeiros, representando os
escravos africanos no Brasil Colonial. Os marujos trajando roupas e chapéus
sofisticados, tocando músicas bonitas e representando os marujos portugueses
descobridores do Brasil. Os caboclinhos com suas vestes cobertas de penas de
aves e com seus arcos de flechas representando os indígenas brasileiros. Finalmente,
a cavalhada, com seus cavaleiros montando belos cavalos representando a Guerra
Santa da Era Medieval. A contenda dos Mouros vestidos de vermelho e dos
Cristãos vestidos de azul era uma grande atração. Eu, que não perdia nenhuma
dessas atividades de agosto, torcia, mesmo sem saber o verdadeiro significado,
para o azul. Hoje os cavaleiros foram
abolidos dessas festividades, talvez, para não se lembrar das atrocidades da
Guerra Santa.
No fim do ano, recebíamos nas
altas horas da noite, as visitas das folias com suas violas afinadas, caixas
batendo, rebecas e pandeiros soando, acompanhando os foliões com suas músicas
melódicas em louvor aos Santos Reis.
No começo do ano seguinte, retornávamos
à nossa casa, no bairro Roxo-verde para as cerimônias da Semana Santa.
Assistíamos as severas pregações dos padres europeus, confessávamos os nossos
pecados, comungávamos e dias depois, esquecíamos as penas do inferno e de seus
capetas e caíamos nos festejos carnavalescos tão condenados pelas pregações
severas dos nossos sacerdotes.
Assim, era a nossa vida.
Vivíamos com farta alimentação natural, com tranquilidade, sem ambição e preocupações
com riquezas, com luxos e outras futilidades O dinheiro era de pouca
circulação. Meu pai tinha sua reserva com vendas de gado e outros animais, de
vez em quando. Além disso, tínhamos, diariamente, o dinheiro com a venda de
lenha para movimentar os fogões de Montes Claros. Um carro de lenha variava de
dez a treze mil reis, que nos serviam para as pequenas compras de alguns
produtos que a fazenda não produzia, tais como: café, querosene, fósforo,
remédios e outras bugigangas. Naquela época não era usado o gás e as famílias
valiam–se dos fogões à lenha para cozinhar seus alimentos.
Os agregados viviam sem
segurança previdenciária e eram diaristas, quando necessário, servindo de nossas
terras para seus plantios, para alimentarem suas famílias. Eram responsáveis,
trabalhadores e honestos e viviam em paz e satisfeitos com nossa família e com
os vizinhos.
Os problemas que surgiam eram
intermediados pelas famílias, amigos e compadres. A Justiça nunca era recorrida
nos problemas da região rural e a Polícia era evitada pela sua famosa violência
e arbitrariedade.
Assim foi a minha infância,
alegre no meio de minha família, dos agregados e dos vizinhos, correndo pelas
vastas terras da fazenda, nadando nos rios de águas correntes entre os peixes e
nas lagoas povoadas de pássaros aquáticos, o que me deixa saudades indeléveis das
coisas passadas, que parecem mais sonhos que realidade. A vida é dura, o que
hoje nos parece prazer e alegria, poderá ser motivo de tristezas e saudades no
futuro. Hoje, o Cantinho tornou-se campo de treinamentos do 55º Batalhão do
Exército e, aquela movimentação do passado, só resta na nossa memória.
Juvenal, Maurício, Adélia, Marina e Violeta |
Como
tudo passa!