O LAVRADOR
* Aristônio Canela
A
impossibilidade de se definir Arte atrela-se às culturas de tantos matizes e,
portanto, histórias vividas e contadas de jeitos diferentes, vendo as
manifestações artísticas, desta forma, virarem figuras surgidas de uma amplidão
inexplorada por nós, para se tornarem elos de uma suposta corrente, soltos no
universo, à espera de uma mão para uni-los.
Com o mais
puro propósito de não haver marcados previsíveis compromissos com a vida, a
Arte deixa-se surgir de si mesma, eximindo-se de genealogia e só estará apta às
decodificações instantâneas quando alguns apenas viram natureza.
Entretanto,
se todos virassem, com certeza não existiria sociedade, posto que artistas têm
o dom de encherem nunca barrigas.
Esse
aspecto, apesar de ser um corte doloroso em nosso cotidiano, é certamente
revestido de pura realidade e precisa ser considerado, ficando, portanto,
entregue a nós, figuras endoidecidas por circunstâncias, mais uma enorme
responsabilidade: dar de comer a almas e corpos.
Alguns
leitores têm me perguntado por que tanto uso a Fazenda como fundo de pano de
minhas histórias e não tenho outra resposta senão a mais simples: é onde
acontecem.
Vinha
naquele entardecer, depois de quase todo o dia procurando Radiola, uma
girolanda bonita e ótima de leite, mas absolutamente avessa às cercas e que,
dessa vez, tinha rompido seu próprio recorde, ao sair dos limites da fazenda e
cair na estrada, possivelmente à procura de um grande amor.
Peguei sua batida depois da porteira
azul, ao lado do embarcadouro, e pus Xamã a passo com os olhos pregados no
chão, para constatar um sumiço do rastro nas barrancas do Traíras.
À tarde,
vinha cantando uma cantiga de adeus e meu estômago já não respeitava as
pitombas colhidas, contorcendo-se em roncos e gorgolejos, me fazendo aceitar a
desdita de minha missão.
De volta,
meu cavalo pôs-se num viageiro farto e macio, farejando uma generosa porção de
farelo de soja e eu um mexidão da feijoada de sábado.
Para cortar
caminho, optei por descer o Morro do Vento Cantor e, com isso, dei-me às
margens do tanque da larga, abusando de água barrenta escorrendo em seu
sangradouro.
Alguns
metros atrás, tinha botado reparo nas duas orelhas levantadas e tesas de Xamã,
notadamente um sinal de alerta.
Encostado no
velho jatobazeiro do campo, emérito sombreador da cabeceira do açude, ele
disparou seu olhar, fulminando o meu, quase me derrubando da sela.
Era um preto
miúdo e gracioso de carapinha branca, olhar generoso e esperto, vestindo um
gibão adoirado de gola redonda e mangas longas, chegando aos nós dos dedos de
uma mão, pelo visto rápido, não afeito a cabos de enxada.
Apoiava um
dos pés descalço sobre uma pedra, fazendo-o dobrar o joelho e mastigava o talo,
certamente adocicado, de capim do campo, e, ao me notar assustado, abriu um
sorriso lindo de pura paz, deixando à mostra dentes alvinhos, alvinhos,
enfileirados igualzinho a uma cerca de jardins bucólicos nos filmes americanos.
Uma
eternidade se passou assim e minhas supra-renais ainda jorravam adrenalina da
mais alta qualidade, quando ele sacudiu o corpo e suas asas azuis despencaram
em suas costas e, ritmadamente, ruflando-as, levantou um voo suave.
Numa pequena
desmesura de espaço, uma das pontas tocou um galho da árvore, fazendo uma pena
desgarrada dançar feito bailarina ao sabor das ordens de Zéfiro, filho ameno de
Eolo.
Estumei
minha montaria com os calcanhares e, num pulo só, a colhi feito fruta madura no
ar e ouvi sua voz, já nas alturas, me dizer: “SAIBA USAR MINHA SEMENTE”.
Toquei
viagem e cheguei em casa já de noite de boca aberta e, olvidando o banho,
fartei-me gulosamente da comida cheirosa. Depois, tirei as botinas, as meias...
ao me deitar na rede, o céu desabou num aguaceiro divino e, encolhido, senti o
sertão renascer em cada pingo.
Lembrei-me
de papai dizendo-me: “ESSAS TERRAS SÃO TÃO BOAS QUE SE A GENTE CUSPIR NASCE UM
PÉ DE CUSPE”.
De
madrugadinha, acordei com a pena azul escapulindo da algibeira de minha camisa,
fazendo cócegas em meu nariz.
Num ato mecanicamente natural, fui ao pomar e arranjei um
lugarzinho bem adubado, onde a plantei, regando-a com o mais puro amor meu.
Instantes depois, toda arrepiada, ela se mostrou em múltiplas alegrias e vidas,
em pequenos brotos no seu caule. Ajoelhado na terra úmida, eu presenciava o
nascimento de um pé de anjo.
Antes de a última estrela despedir-se de mim, tive absoluta
certeza de ter sido parido um artista.