terça-feira, 1 de outubro de 2019

- Artigo -

O tempo não para
 por Wagner Gomes*

Corre pela internet uma polêmica manifestação atribuída a uma psicóloga que, ao assistir ao filme sobre a vida de Cazuza, sente-se indignada com o movimento, por ela identificado, que atribui aos nossos jovens um errôneo culto a esse artista. Afirma, então, tentando destruir a tal mitificação, que ele era um marginal, um bandido mimado pela mãe, que satisfazia todas suas vontades e loucuras, um traficante, e por aí vai. Manifestava sua enorme preocupação, por ter sua filha assistido ao filme, e nos relata o trabalho que teve para convencê-la de que Cazuza não merecia ser reverenciado por ninguém. Usar drogas, participar de bacanais e beber até cair, não eram exemplos de vida a serem seguidos, tal como atribui ao filme a transmissão desses conceitos. Deixo de revelar o nome da psicóloga, por não ter certeza da autoria do texto a ela atribuído. No entanto, quem fez essa manifestação, não entendeu nada do filme e confundiu o papel do artista. O filme só foi feito porque Cazuza era um poeta inspirado, um homem de seu tempo, ao qual se debruça, como mostram suas letras. Ademais, a AIDS, ao atingi-lo, tocou num pânico social, que revelava o medo de cada um de nós de ser contagiado também. A forma como ele reagiu, a dignidade com que se portou, e as músicas que produziu, são a demonstração prática do belo ser humano que ele foi. Quem produziu tal texto, coitado, mesmo se atribuindo mestrado em psicologia, parece conceder ao artista o papel de educador, coisa que é papel dele, não do Cazuza, que apenas despertou a juventude para refletir sobre o mundo em que vivemos, para que não ficasse tão careta quanto certos pais. Creio mesmo que o seu sofrimento despertou uma maior consciência, estimulando o jovem a começar a usar preservativos e a descobrir os perigos ocultos na droga e na orgia, a partir de seu infeliz exemplo de como não se portar. Se a opinião dessa pessoa prevalecesse, imaginem o que seria de vários grandes artistas, como Beethoven, Tchaikowisky, Picasso e tantos outros - geniais, depravados, devassos às vezes – e, também, muito problemáticos. Seriam banidos e execrados! E hoje estaríamos impedidos de contemplar a monumental obra que deixaram. Qualquer um deles, certamente, não é modelo de vida pessoal a ser imitada.  No entanto, pessoas como essa psicóloga têm seus valores. Isso é incontestável. Vejam como julgam com facilidade, cheios de verdade. Moralizam o mundo com suas mal-formadas crenças. Nem conseguem ver o valor da arte atingindo milhões de pessoas pelo mundo. Ficam apegadas a detalhes imaginários e acabam indo contra quem teve o mérito de provocar a polêmica. Fico pensando que, no fundo, quem escreveu esse texto deve ter uma puta insegurança pessoal, um medo enorme de que a vida rejeite o cabresto e se rebele, saia do controle. Só que ela ainda não percebeu que a vida não é cabresteável, nem disciplinada e muito menos obediente. E a própria vida disse não ao Cazuza. Não seria esse, por incrível que pareça, também, parte de seu legado?


*Artigo produzido em 2009 e publicado em um dos primeiros números da Revista Viver Brasil. 

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