18/10/2013
'Tuia' pela saudosa amiga Maria de Lourdes |
O jornalista Luís Carlos Novaes perguntou-me se eu tinha material armazenado para escrever sobre “Tuia”, que já foi, em passado recente, uma figura mitológica da cidade. Emendando sua pergunta, disse-lhe que o personagem tinha sido meu colega de redação no O Jornal de Montes Claros, onde tinha endereço fixo. É que o diretor do jornal, o saudoso Dr. Oswaldo Antunes, condoído da situação pessoal do preto velho, que peregrinava debaixo de marquises, ao deus-dará, mandou fazer para ele casinha de madeira, tipo casa de cachorro, que foi colocada ao final da varanda, dividindo parede-meia com a redação. Daí, a razão geográfica para ser identificado como colega de redação.
“Tuia”, em toda sua pobreza e humildade, sempre foi assunto
para a imprensa, responsável direta por sua celebrização como tipo popular
inesquecível. Por ter sido considerado inofensivo, até certo ponto, e também
por seu defeito de fala, que não lhe permitia falar mal de ninguém, foi muito
focalizado pela imprensa, principalmente pelo órgão que o acolhera como
patrimônio da casa.
Foi uma das pessoas públicas mais fotografadas de seu tempo
de cidadão montes-clarense, pelas décadas de 1950 a 1990. O querido colunista
social Lazinho Pimenta, volta e meia, enfiava seu nome em alguma nota
bem-humorada. Sua foto, ora dormindo, de bico, como um bebê, ora de olhos
abertos e sorrindo com a boca desdentada, ocupou páginas inteiras, em revistas
de prestígio, como “Montes Claros em foco”, do saudoso Ataliba Machado, e “Encontro”,
dirigida por Lúcio Bemquerer, que, parece-me, assinou uma reportagem sobre o
mito, um homem que nem falava e arrastava-se esfarrapado da redação do O Jornal
de Montes Claros até o Hotel São José, seu ponto de almoço.
Um colega de ginásio, Ítalo Colares, que sempre foi
grão-mogolense, revelou-me que “Tuia” era seu conterrâneo e que o conhecera por
lá, onde tornou-se conhecido como Antonio Preto. Nessa época, o nosso
biografado era mais novo e tinha uma condição física melhor. Falava-se, em
Grão-Mogol, que poderia tratar-se de um ex-escravo, mas essa afirmação,
desprovida de prova documental, não merecia crédito. Porque, para ter sido
cativo, ele deveria ter nascido antes de 1870, data da Lei do Ventre Livre, e
teria completado 60 anos em 1930. Portanto, pode-se descartar essa versão de
que teria sido escravo e aceitar a certeza de que nasceu durante o cativeiro de
seus pais.
Em sua terra, quando moço, ganhou a má fama de viver da
alcovitagem. Os corações enamorados, com dificuldade para chegar à pessoa
amada, principalmente havendo impedimento para isso, encarregavam-no de levar e
trazer os bilhetes apaixonados. Num desses episódios de intermediação
romântica, foi flagrado como alcoviteiro e tomou uma sova de criar bicho. Diz a
lenda que sua língua teria sido cortada, para não revelar os nomes de outros
casais a quem servira no leva e traz de cartinhas perfumadas.
Destarte, repudiado por seus patrícios, deixou sua cidade
natal e partiu para o exílio em Montes Claros, que o acolheu paternalmente,
como é de sua tradição de hospitalidade. Tenho a absoluta certeza de que, em
fevereiro de 1953, ele já se encontrava estabelecido por aqui e com jeito de
ser morador acostumado ao novo lar. Conheci-o na Pensão São Benedito, em que me
hospedava e onde ele também fazia sua refeição diária. Quer dizer, mais uma vez
que, antes de sermos colegas de redação, fomos colegas de hospedagem, com muita
honra para este escriba.
“Tuia” agia naturalmente até que a pinga de cada dia lhe
subisse à cabeça, desde então. Se de barriga cheia, tudo ótimo. Porém, se
bulissem com ele, ficava nervoso, pegava o porrete em que se equilibrava e dava
pancadas pra todo lado. Embora não conseguisse falar, agredia verbalmente, com
grunhidos, que representavam os palavrões mais cabeludos. Era um pornográfico,
que dizia obscenidades por gestos e olhares, tudo fazendo crer que não se
tratava de um anjo de pureza. Mesmo assim, alguns crentes costumam deixar seu
símbolo, o bico de bebê, sobre seu túmulo, no cemitério do Bonfim, em
agradecimento por graça alcançada.
Pode, todavia, ter se santificado pela pobreza extrema, pelo
analfabetismo de pai e mãe, pelo sofrimento da deficiência física, pela solidão
da vida inteira. Ele poderia, muito bem, fazer uma ponta em filme de Charles
Chaplin, que o acolheria como um achado e exploraria seu perfil de tristeza e
poesia...
* Do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros –
IHGMC