quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

- Artigo -

Biografia de “Tuia” -
pelo saudoso Haroldo Lívio*
18/10/2013


'Tuia' pela saudosa amiga Maria de Lourdes

O jornalista Luís Carlos Novaes perguntou-me se eu tinha material armazenado para escrever sobre “Tuia”, que já foi, em passado recente, uma figura mitológica da cidade. Emendando sua pergunta, disse-lhe que o personagem tinha sido meu colega de redação no O Jornal de Montes Claros, onde tinha endereço fixo. É que o diretor do jornal, o saudoso Dr. Oswaldo Antunes, condoído da situação pessoal do preto velho, que peregrinava debaixo de marquises, ao deus-dará, mandou fazer para ele casinha de madeira, tipo casa de cachorro, que foi colocada ao final da varanda, dividindo parede-meia com a redação. Daí, a razão geográfica para ser identificado como colega de redação.

“Tuia”, em toda sua pobreza e humildade, sempre foi assunto para a imprensa, responsável direta por sua celebrização como tipo popular inesquecível. Por ter sido considerado inofensivo, até certo ponto, e também por seu defeito de fala, que não lhe permitia falar mal de ninguém, foi muito focalizado pela imprensa, principalmente pelo órgão que o acolhera como patrimônio da casa.

Foi uma das pessoas públicas mais fotografadas de seu tempo de cidadão montes-clarense, pelas décadas de 1950 a 1990. O querido colunista social Lazinho Pimenta, volta e meia, enfiava seu nome em alguma nota bem-humorada. Sua foto, ora dormindo, de bico, como um bebê, ora de olhos abertos e sorrindo com a boca desdentada, ocupou páginas inteiras, em revistas de prestígio, como “Montes Claros em foco”, do saudoso Ataliba Machado, e “Encontro”, dirigida por Lúcio Bemquerer, que, parece-me, assinou uma reportagem sobre o mito, um homem que nem falava e arrastava-se esfarrapado da redação do O Jornal de Montes Claros até o Hotel São José, seu ponto de almoço.

Um colega de ginásio, Ítalo Colares, que sempre foi grão-mogolense, revelou-me que “Tuia” era seu conterrâneo e que o conhecera por lá, onde tornou-se conhecido como Antonio Preto. Nessa época, o nosso biografado era mais novo e tinha uma condição física melhor. Falava-se, em Grão-Mogol, que poderia tratar-se de um ex-escravo, mas essa afirmação, desprovida de prova documental, não merecia crédito. Porque, para ter sido cativo, ele deveria ter nascido antes de 1870, data da Lei do Ventre Livre, e teria completado 60 anos em 1930. Portanto, pode-se descartar essa versão de que teria sido escravo e aceitar a certeza de que nasceu durante o cativeiro de seus pais.

Em sua terra, quando moço, ganhou a má fama de viver da alcovitagem. Os corações enamorados, com dificuldade para chegar à pessoa amada, principalmente havendo impedimento para isso, encarregavam-no de levar e trazer os bilhetes apaixonados. Num desses episódios de intermediação romântica, foi flagrado como alcoviteiro e tomou uma sova de criar bicho. Diz a lenda que sua língua teria sido cortada, para não revelar os nomes de outros casais a quem servira no leva e traz de cartinhas perfumadas.

Destarte, repudiado por seus patrícios, deixou sua cidade natal e partiu para o exílio em Montes Claros, que o acolheu paternalmente, como é de sua tradição de hospitalidade. Tenho a absoluta certeza de que, em fevereiro de 1953, ele já se encontrava estabelecido por aqui e com jeito de ser morador acostumado ao novo lar. Conheci-o na Pensão São Benedito, em que me hospedava e onde ele também fazia sua refeição diária. Quer dizer, mais uma vez que, antes de sermos colegas de redação, fomos colegas de hospedagem, com muita honra para este escriba.

“Tuia” agia naturalmente até que a pinga de cada dia lhe subisse à cabeça, desde então. Se de barriga cheia, tudo ótimo. Porém, se bulissem com ele, ficava nervoso, pegava o porrete em que se equilibrava e dava pancadas pra todo lado. Embora não conseguisse falar, agredia verbalmente, com grunhidos, que representavam os palavrões mais cabeludos. Era um pornográfico, que dizia obscenidades por gestos e olhares, tudo fazendo crer que não se tratava de um anjo de pureza. Mesmo assim, alguns crentes costumam deixar seu símbolo, o bico de bebê, sobre seu túmulo, no cemitério do Bonfim, em agradecimento por graça alcançada.

Pode, todavia, ter se santificado pela pobreza extrema, pelo analfabetismo de pai e mãe, pelo sofrimento da deficiência física, pela solidão da vida inteira. Ele poderia, muito bem, fazer uma ponta em filme de Charles Chaplin, que o acolheria como um achado e exploraria seu perfil de tristeza e poesia...

* Do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros – IHGMC

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