quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Para Ray -

RAY COLLARES EM CORES, PROSA E POESIA -
por Raquel Mendonça*




Raio de luz fulgurante
Mais que tudo, desafiante
Nas trevas da infinita imaginação
Tomada de cores, caminhos e conflitos
Onde a dor de existir e desistir, talvez
Fosse detalhe sem maior importância.

Se foi homem ou menino
O menino foi sempre maior e mais forte que o homem
Ora tranquilo, ora atormentado
Ora alegre, ora triste, transtornado
Ora lúcido, ora alucinado.

Mas o menino acabava vencendo todas as batalhas
E o comandava com segurança varonil
Levando-o de volta, docilmente
Aos brinquedos e folguedos de infância.

E dava-lhe ordens mágicas
Dos álbuns de figurinhas
Dos heróis das revistinhas
Aos esplêndidos gibis
Marco na sua carreira
Que ganhou o país e o mundo!

Foi cor e criatividade a mil por hora
Correndo do tom pastel
Das regras e réguas das escolas de arte acadêmicas
Vivendo e professando a mais completa liberdade de ação
De indomável expressão, execução ou composição artística.

Foi ônibus urbano especial, espacial
Que passava voando um após outro à sua frente
Assentado em banco de praça do Rio
Lotado de arte e vanguardismo
Em alta velocidade e vertiginoso talento
Muito tempo adiante de seu tempo.

As faixas laterais se entranhavam inteiramente em sua mente
Perfuravam o seu coração em ato borbulhante de criação
Acabando por explodir nas telas que o tomavam inteiro.

De genialidade desconcertante e torrencial
Varava chuvas, sombras, madrugadas
Banhado de luz, palavras e mais palavras
Nas prosas e poesias sem fim em praças e bares tantos
E tontos de tanta, tamanha inquietude, inspiração profunda.

A dor aguda de viver tão livremente
Não doía indefinidamente
E havia momentos de ser feliz como criança.

Batizado Raimundo Felicíssimo Colares
Felicíssimo por ironia do destino
No caminho cheio de pedras, em meio a trevas
E dolorosos espinhos que percorreu
Pesadas e inesperadas pedras
Pesarosos espinhos!...

RAY
COLLARES

RAY
COR
LARES

TODOS OS LUGARES DO MUNDO
COLARES!...

Um menino?
Um homem?


Um gênio?
Um gigante?!

As faixas fortes e fulgurantes dos ônibus urbanos
Por ele definitivamente reinventadas
Estão entre os brilhos mais intensos de seu trabalho
Transformadas em arte marcante, mais que brilhante.

Da cabeça não lhe saia Mondrian e sua arte mundial...
"Mondrian, Mondrian, Mondrian
Ainda vou entender esse cara
- seu desenho, devaneios, sua coragem e colagem -
como nunca ninguém entendeu!"

Quem nasceu em Grão Mogol, em 1944
Diamante histórico da região
Coberto de areias brancas, pedras e rios tempestuosos
Tinha mesmo que se encantar, em 1986
Precoce, trágica e dramaticamente
No meio de vasto, repentinamente vazio caminho
De quarenta e poucos anos e planos muitos, inacabados.

Foi poeta de aguda sensibilidade
Nos traços fortes de repentina ternura
De preciosa agenda poética perdida
Em mesa de bar
Em banco de praça
Do Rio imenso
Ou esquecida com algum amigo repentino e distraído.

Cristina (era esse mesmo o seu nome?!)
Amiga do Rio que também o acompanhava, como eu, pacientemente
Pelas ruas e luas da cidade
A resgatá-lo semi-vivo de praias áridas e imaginárias, de íntimas tormentas
Catando pedaços, brilhos e cacos, noite adentro
Recolhendo taças e talheres inúteis dos bares bêbados de surpresa
- Sempre a pedido da mãe preocupada e atenta, Dona Joaninha
Que me ligava tantas e tantas vezes, na madrugada -
E eu saia rua abaixo, praça a praça, à sua procura
Com o mesmo carinho de irmã que todo o tempo experimentei
Nestes montes inóspitos e hostis, então, para a cultura, para a arte...

Dono do MAM e do mundo
Percorreu triunfos e tristezas
Recebendo prêmios e mais prêmios
Mais que justos e merecidos.

Experimentou, assim, fartamente
Glórias, angústias e êxtases
Sem se deixar impressionar, no entanto
Ou deter muito tempo
Por nenhum deles.

Nos traços e contrastes gritantes
De sua silenciosa agonia
Ou quem sabe intensa e passageira alegria
Tinha tantas vezes ares de cidadão estelar
Vestindo elegante conjunto de brim caqui
Para, em seguida, mostrar a outra face do seu humor social
E profundo desprezo pela aparência
Comparecendo descalço e de calças dobradas até o joelho
Mangas arregaçadas e fechos descuidados
Ostentando, no andar ereto, nítido descaso
Pelo espanto dos insensíveis e sensatos.

Deixou obras e marcas permanentes por toda parte
Em lares e mais lares de amigos e amigas do peito
De perto ou de longe, morando todo o tempo em sua mente.

"Vou para o Rio ou volto, em março, para Montes Claros?!"
Teresópolis, Niterói, Lisboa, Nova York, Milão, pouco importava...
"O Rio é o Rio, mas Montes Claros é Montes Claros
Montes Claros é o meu lugar no mundo!..."

Dos alagados da Bahia
Cristalizando na tela a tênue sobrevivência humana
Sobre as águas e as ruas paradisíacas e perigosas de Salvador, do Rio
Ou esquinas tentadoras e infernais da Itália
Em seus lixos incômodos e solenemente incendiados.

Lá estava ele, Ray, pura paixão, voando em pincéis e poesia
Ou vivendo os momentos comuns de terna e eterna agonia.

Foi família de grandes figuras e vivência feliz, vezes sofrida
Dona Joaninha, ah, grande e encantadora mãe, Dona Joaninha
Fulô, ô Fulô, a flor que enfeitava a todos - a ele, em especial, amparava
Irmãos Terezinha, Maria Aparecida
Geraldo, Maria do Rosário, a Rosarinha
Jorge Eustáquio, Cassimiro
Fernando, mais que irmão, amigo atencioso
João Ricardo, que se foi muito mais cedo
Grandes quadros no coração guardados
Na mágica poética de seu dia a dia conturbado
Navegando entre a alegria, a dor e a certeza de ser amado!...

Numa das últimas conversas de bar me disse, mais uma vez, coisas e brilhos como os poemas prontos:
"Viver uma só vez/ Viver uma vez/ Viver uma." (...)
"Dia-dor-im/ É a dor/ De Diadorim/ Dentro de mim."(...)
"Sou homem/ Da mesma maneira/ Quero uma mulher/ Um grande amor/ Um filho."

Daí o amor correspondido apenas com a maior e mais pura das amizades!...

Quando ele se foi, fiquei tempos sentindo-o por perto, como se a me proteger,
chegando a ter a nítida sensação de "ouvir" os seus passos me seguindo, os seus braços me amparando
O mesmo que por ele fiz durante anos...

Fiquei como todos inconformada, sofrendo a dor da perda de um amigo
Mais que especial, admirado, querido
Escutando de novo as conversas e confidências no Bar "Kamindicasa"
E tantos e tantos outros...

Mas o que verdadeiramente importa
De todas as portas que enfrentou e abriu
É a arte que fez magistral
Os sonhos que bem ou mal sonhou
Viveu, reproduziu, realizou
O eterno coração de menino
A imensa saudade de todos
Aqui assustados, chocados
Desesperados, desamparados
Quando a alma no coração em chamas!...

E o amor, Ray
Ah, o amor
Todo o amor do mundo para Ray
Grande Ray, Rai-mundo,
como lembrou em seu poema:
"Mundo, vasto mundo
Eu me chamo Raimundo
Sou um poeta, uma rima
Não uma solução!..."

Hoje estrela luminosa no céu
Anjo bom e amigo do infinito!...

Em meio ao silêncio que se fez
O repentino grito!...

* Poetisa, cronista, amiga-irmã do artista.
Membro da Academia Montes-clarense de Letras/AML, da Academia de Letras, Ciências e Artes - ACLECIA e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros - IHGMC

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